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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ENSAIO MÍNIMO DE FÁBULA SEM ESOPO NEM FEDRO OU LA FONTAINE POR DETRÁS

Vagaroso, muito vagaroso, o caracol alçou as antenas e aquilatou com elas o grau de humidade na atmosfera e no solo, antes de se arriscar a descer da folha de couve, saborosa mas distante da fresquidão que às escuras enganaria qualquer, onde tinha pernoitado. A temporada das temíveis geadas matinais, embora próxima, não está em cartaz, e urge aproveitar a preguiça dos pássaros a largar o ninho para, sem grande segurança, ainda assim, empreender a caminhada deslizante sobre ou por debaixo dos múltiplos estorvos de qualquer horta. A confirmar-se o que ele ontem captara por acaso na linguarice de dois grilos, haverá na estrema oposta, à beira do poço, uma nova plantação de alfaces de grande porte. A não ser que não passasse de cantiga, do grilo, a tentar a golpada decisiva sobre a fêmea em pauta, avessa a deixar-se enrolar ao primeiro assédio em serenatas. No entanto, desta vez, não. Elas, as alfaces, viçosas e vistosas, ali se enfileiram e aguardam quem as saiba mordiscar em lentos modos, esmoer com deleite até ao talo, e engolir, por fim, com os olhos revirados, em supremo êxtase.
Apesar de ser longa a distância a percorrer até à maravilha anunciada pela indiscrição de ouvir uma conversa entre namorados, sejam grilos ou gafanhotos ou toupeiras, tanto faz, o importante será que não falte a tenacidade e a atenção ao gastrópode, ou os predadores do costume atacarão mal surja a oportunidade, limitando-se a segui-lo através do inevitável rasto de ranho com que o chão atrás dele o trairá. É preciso ir depressa e enveredar por quantos atalhos recomendem a poupança de esforços na corrida, porque o nascer do dia não tarda muito e com ele é fatídico o calor, o pior dos flagelos infligidos a uma criatura cuja viscosidade, inata, é garantia de vida. Há lá coisa mais aprazível que a sombra proporcionada por legumes de largas folhas e verdura ímpar, tenra, da que só de ser contemplada e desejada se desfaz na boca sem lá estar ainda? E haverá maneira de mudar de horizontes mais segura que a que a escuridão da noite possibilita?
Na encosta do monte que emoldura o plaino onde a horta se inscreve, porque é de terra nua, esventrada por algum desabamento, e favorece o contraste, assentaram quartel de observação cinco ou mais corvos a grasnar ameaças gratuitas uns aos outros. Um deles alonga o pescoço e sacoleja as asas, como se estivesse a ver alguma coisa com interesse na campina em frente. Sendo um facto incontestável que o corvo tem olhar arguto, não parece, no caso em marcha, que o obscuro passarão lobrigue de tão longe o coitado do molusco condenado a trazer a casa às costas. Estará a pôr em mira um outro coitado qualquer, decerto, e a advertir os comparsas da eventualidade de pitéu para todos a breve espaço. E lá vai a comandita dos corvos em alvoroço famélico, voando por cima da horta sem olhar para baixo, onde se esconde a tremer um caracol votado a divagações com escuta de conversas namorisqueiras, o pior dos flagelos infligidos a uma criatura cuja mansuetude, inata, é garantia de vida. Há lá coisa mais apetecível que a paz proporcionada por legumes de largas folhas e verdura ímpar, tenra, da que só de ser contemplada e desejada se desfaz na boca sem lá estar ainda?
Para que tudo seja tomado em devida conta, falta ainda informar que ao lado da horta há uma estrada, e que essa estrada, mais ou menos a meio da área de cultivo, chega a entranhá-la, em curva apertada, para logo a abandonar de vez, roubando-lhe um bom quinhão de produtos virtuais a favor da nudez do alcatrão. E quem se obrigue a palmilhar a quintarola de ponta a ponta, não raras vezes opta pela dupla travessia da estrada, onde ela se intromete no amanho, tão-só para não ter de a contornar e nisso prolongar algumas dezenas de metros o trajecto.
Foi o que fez o caracol. E não é que nem um carro se lembrou de dar à história um final mais condizente, previsível que o dissessem?

ONDE SE PROVA QUE A DISTÂNCIA DA TERRA AO CÉU É MAIOR NO RIGOR DO INVERNO

Avassalador, o nevão teria caído ao longo da madrugada, para grande espanto de toda a gente. Sobretudo de quem tem por gozo visceral ou particular maneira de estar na vida a obsessão de se deitar tarde, sem pressa de mais nem promessas a cobrar. E como primeira reacção em função do assombro, a exultação de todos pela raridade do fenómeno numa zona de tão baixa altitude. As contas far-se-iam depois.
Das crianças, na idade do sacrifício de ir à escola, duplicou o regozijo, quando entre elas estralejou a notícia de que o professor ficara retido na estrada da serra, a quilómetros de distância. Com alguma sorte, até podia ser que uma avalancha os arrastasse, carro e dono, pela encosta abaixo, e a escola, por umas semanas, no mínimo, estivesse encerrada para efeitos de limpeza e reaprovisionamento. Entretanto, a exaltar o ausente, fizeram-lhe à entrada um boneco de neve de tais dimensões, que a porta da escola, desnecessária, deixou de se abrir.
Do carteiro, no dia a dia condenado a percorrer uma por uma as ruas todas de toda a aldeia, a pé, apoiado ou equilibrado contra a bicicleta, só lamentaram a falta aqueles cuja subvenção de reforma lhes acudia assim, pedalada e com que penitência mês a mês. Agora os outros, os das contas da electricidade e da água e não apenas, esses glorificaram o nevão e quantas invernias lhes aliviassem o lombo da canga mensal de tão despóticas despesas, com aguilhão e tudo.
Dos velhos, de luto pela viuvez e que teimam em morar a sós consigo, lá se foram três, duas e um, porque o frio lhes tolheu a voz e ninguém longe ou perto os ouviu gritar por socorro. E do armazém de artroses e reumático entre tremura e névoa nos olhos, onde acaba por ser sina sua esperar em grupo pelo barqueiro, também um embarcou ao ver a alvura da neve pela janela e desta se lançar de cabeça, imaginando-se a flutuar entre as nuvens. E o mais triste, porque ninguém chegaria a tempo de o esclarecer, foi ele ter morrido a acreditar que o céu era ali mesmo, ao alcance de um salto.
Dos bombeiros, também eles a necessitar de auxílio num quartel com os portões aferrolhados pela neve, ninguém teve pena. Nem ninguém teve competência para os arrancar de lá de dentro e botar à estrada, a acudir a quem, como eles, deles carecesse. De nada valeriam as fardas novas, escassos dias estreadas em cerimónia protocolar de enorme estrondo num meio onde cerimónias dessas não haverá todos os dias, com a charanga da casa, arrebatada até aos bemóis, a ser capaz de pôr ao léu lenços e olhos e narizes, tudo a fungar ranho e lágrimas.
Telhados a ruir com fragor, porque as ripas de sustentar as telhas não sustentaram o complemento de cobertura doado pelos céus, vieram a ser quase tantos como os que, com estoicismo, conseguiram a façanha de aceitar a dádiva e aguentar a verticalidade. Por fortuna, soterrados pelos escombros, houve somente três casos a desenterrar e a enterrar de novo, como se impõe, no cemitério: os ditos três velhos silenciados por ordem do frio. De acordo com o relatório da autópsia, já estariam mortos quando os respectivos telhados corroboraram a ordem do gelo oral e até tiveram o zelo, inútil, de se adiantar ao coveiro. E capoeiras depenadas antes da alvorada canora, estrebarias e currais sem sequer moscas, coelheiras sem cheiro de caganitas recentes, ou até gaiolas de pássaros com as portinholas escancaradas e os moradores por ora em parte incerta, tudo o que vida acolhesse e da vida fosse garante com a sobrevivência em perigo, tudo se viu posto a ferros e guardado à vista, não se lembrassem as trombetas apocalípticas de começar a tocar e a desenfrear a debandada geral e os assaltos em conformidade.
E dessa maldição porta a porta dos mercadores de peixe e congelados e demais quinquilharias comestíveis, pisando as buzinas em contínuo como anúncio contra a surdez militante, nenhum deles logrou sequer aproximar-se e ser castigo de orelhas quaisquer. Ninguém no lugar se lembra de tantas horas de paz, sem buzinas a azoinar nem vendilhões a requerer, e a merecer, a expulsão sob o azorrague divino.
E nem Deus se aproximou dos seus fiéis servidores, afinal, num lugar de tradicional investimento nas benemerências do além. Tão sério foi o nevão, que durante três semanas inteirinhas não houve missas nem padre. E nunca tão pouco se pecou por lá — comentou para si mesmo o sacerdote, varrido o interregno para férias invernosas estabelecidas pelo patronato celestial, ante o silêncio no confessionário.

MONÓLOGO A DUAS VOZES SOB SUSPEITA DE PRELIMINAR COMBINAÇÃO

Desdobrou o jornal e abriu-o a toda a extensão em quaisquer páginas, como se de repente lhe tivesse dado uma enorme sede de leitura, mas apenas e só a pretexto de atrás de tal leitura se esconder, atendendo a quem acabara de entrar no café. Gesto tardio, afinal, já que a muralha de papel logo soçobrou ao primeiro impacto do aríete das palavras de ouvir, que remédio, e não de ler.
“Vê lá se não entornas as notícias”— chalaceia, cáustico, quem chegou à mesa, entretanto, e se sentou sem pedir licença —. “Tens o jornal de pernas para o ar”.
Histórias há que se finam mal principiam. Esta, assim parece, tirando as medidas com rigor ao fato sepulcral vestido pelo leitor do jornal às avessas, apanhado em flagrante atitude de renúncia a qualquer modo de confraternização no momento. A não ser que o contra-ataque a tal obrigue, e aí, segundo as regras, não há regras nenhumas a invocar no contorno das conveniências.
“Ler ao contrário não é para toda a gente. Mas o que eu pretendia era mesmo que não me visses, nem mais”.
“E eu confesso que só entrei”— insiste a voz da corrosão primeira, na avidez de recuperar o comando das operações —, “porque pensei que a esta hora por cá não estarias”.
Onze e trinta da manhã. Um qualquer café na baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos, com a algaraviada que incomum seria se não fosse a tal hora. Porque é sábado, acrescente-se. Também é conveniente notar que esta desmesura de luz, apesar de coada pelas nuvens altas e tonificada pelo espelho das montras e da humidade na calçada, só costuma verificar-se neste dia da semana e nas supraditas circunstâncias. O riso é fácil e ágil a resposta. Os lugares-comuns têm como nunca o seu espaço estabelecido na linguagem. Para quê teimar na descida ao éter inverso da presciência de que um fim-de-semana é quase instantâneo a sumir-se? Há que aproveitar dele as horas todas, toda a luz nele natural, embora coada por nuvens altas e só tonificada pelo reflexo nas montras e nas pedras escorregadias da calçada.
“Ia-me espalhando na rua”— reincide a voz intrusa no cosmos físico e temporal da outra voz, a que se finca em enjeitar a convivência, como se algo de cada vez menos secreto a tornasse inviável a um sábado, de manhã, e porque não aos demais seis dias muito bem contados, seja a que horas for, noite que seja.
“E teria sido uma pena”— confrange-se a voz avassalada, com o maior dos sorrisos de nem pressuposta contenção, se já antes comprovada a nula importância dada por quem ouve a quem porfia no vilipêndio da luminosidade consagrada por um sábado matinal, num qualquer café da baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos.
Entre ambas as vozes, como se nenhuma delas tivesse rosto e olhos e boca, obreiros de quanto até agora se pronunciou e escutou, continua ao alto um jornal a ser parede, frágil que seja mas bastante para que a conversa morra, sem apelo e sem pena, de inanidade.
E sempre de pés para cima, como se desafiasse a gravidade, o jornal.