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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 30 de setembro de 2006

TRANSVIO RÁPIDO ENTRE TERRA E CÉU SALTITANDO O MONTE OLIMPO

Entrou no comboio como se tivesse entrado num templo: em silêncio murmurejado passo a passo. Também a carruagem está sem vivalma, lembrando uma ermida esquecida entre penhascos e cujos romeiros desistissem de rogar benfeitorias, resolvendo tomá-las por requisição directa ao armazém celestial. Não se ajoelha, porém. Opta por se sentar junto de uma janela. Dali, sabendo-se em paz consigo, qualquer deus que desande pelas cercanias o verá sem ter de percorrer todo o comboio. E quem diz deus, dirá deusa, ninfa. Uma qualquer das divindades em catálogo há já uns milénios, para consumo de poetas e outros vagamundos sem norte, muito antes do invento de comboios e linhas, estações e apeadeiros.
Aquela além, como mais próximo exemplo a citar, que aí vem carregadinha de malas até ao esgar íntimo do desespero. Pois parece ser aqui mesmo, não que enganar, isso não, é esta a composição, vamos lá entrando. Deus é camarada para quem o ame com tão belas formas e tão fundos olhos.
Entra no comboio como se entrasse numa floresta: com suor excomungado pingo a pingo. Também a carruagem está sem vivalma, ou quase, mais parecendo uma capela remota entre matagais, cujos peregrinos abandonassem de vez a pedincha de bênçãos e decidissem colhê-las de viva voz no entreposto das nuvens. Não se ajoelha, porém. Prefere instalar-se junto de uma janela. Daqui, de pazes feitas consigo, qualquer deus que se perca pelas cercanias a verá sem ter de vasculhar todo o comboio. E quem diz deus, dirá fauno, sátiro. Qualquer um desses mitos cornudos desde há já uns milénios, como aval e justificação de crendices e preconceitos afins, muito antes de haver maquinistas e comboios, agulheiros e suicidas.
Aquele além, como mais próximo espécime a invocar, que ali sentadinho finge ler um livro e de viés lhe espreita as pernas e por elas dimensiona o resto. Não há que enganar, isso é que não: tem o explícito perfil de beato falso. Deus nem sempre é amigo de quem dele se sirva como vulgar estandarte.
“Atenção, senhores passageiros: lamentamos informar que o comboio estacionado na linha número um não vai prosseguir a sua marcha”.

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

VERSO E ANVERSO DE QUALQUER MOEDA FORA DE CIRCULAÇÃO EM QUALQUER PRAÇA

Prometeu voltar. Que um dia, quando tornasse a fazer aquela zona, a procuraria na mesma praceta onde se tinham descoberto, por mão do acaso, e dado a conhecer. Conseguiram reviver, afinal, a partir de tão fortuita ocorrência, um tempo e uma situação por que nunca antes se haviam emaranhado. Não se conheciam. Nada de nada eles saberiam um do outro. E todavia souberam, no espaço de um dia e uma noite a trocar mimos de enamorados ante a fogueira das próprias entranhas, garantir a pintura da mais arrebatada tela que antes disso ou depois se lhes ofereceria dependurar na lembrança.
Nem por um distraído instante deixaram de se ter de olhos nos olhos e mãos nas mãos, enquanto o mais corpo que de ambos sobejasse não sobejava e neles se tornava em asas que até aos confins do infinito os fez mergulhar. Como é surpreendente a madureza ao reacender uma juventude que em devido tempo se lhe escapou, por esbanjamento ou toleima de aprendizes: ignorante de fastio ou canseira, ultrapassaria todos os limites impostos, começando e acabando na obrigatoriedade não explicada da partida dele, mal irrompesse a aurora, sob o solene compromisso de voltar. Que um dia, quando tornasse àquela zona, a procuraria na mesma praceta onde se tinham redescoberto, por mão do acaso, e dado a reconhecer.
Voltou, verdade se diga, alguns meses depois. E voltou a partir, mal irrompeu a aurora, renovando a promessa anterior. E voltou muitas vezes mais, separadas por meses de total apagamento sem qualquer notícia. E partiu outras tantas, sempre encoberto sob a promessa de não esquecer a praceta onde tudo, para ambos, começara, recomeçara e dera ares de não pretender soçobrar tão depressa.
Nunca mais que um dia e uma noite de cada vez. Bem lhes aprouve a lição dos quase vinte anos que desfiaram juntos até ao do divórcio, muito antes do reencontro, da redescoberta mútua e do relançamento à aventura nos confins do firmamento sobre a praceta.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

ANTES LUNETAS QUE SINETAS DE ALARME À MÃO DO SONO

Como se a vida fosse uma laranja, de casca amarga e um âmago doce e sumarento, embora ácido, assim ela a aceita e usufrui, conquanto se contemple no reflexo na água do tanque, onde enxagua ao de leve um alguidar de roupa. Impreciso e tremelicante, o reflexo. Incapaz de lhe dar a ouvir o clamor dos olhos pisados. Por isso, os óculos.
Por isso, os óculos de sol em tempo de chuva e a chave do carro, ali à mão, num bolso, se preciso for. Quanto à roupa, encharcada, a rogar estendal de corda e molas e alguma aragem morna, qualquer saqueta de plástico substituirá com vantagens o malote de viagem, de que ele ainda se serve como travesseiro. "O mais eficaz e barato dos processos anti-roubo"–, dissera ele, depois de saciado nela, virando-lhe as costas e embrulhando-se no saco-cama, ao fundo da tenda, já a dormir antes de despejar a cabeça sobre o dito improviso de almofada e dispositivo contra ladrões que tão bem publicitara.
O guarda do parque aproveitou o alguidar como vaso para lá plantar uma roseira, em que hoje tanto se remira, junto à porta levadiça. E a tenda, apesar do mau cheiro que lhe empestou o pano durante quase uma semana, e uma vez transpostas todas as formalidades de retirar o corpo do campista assassinado, ainda a impingiu bem, na temporada do ano seguinte, a uma jovem que por lá apareceu, de carro, com um malote de viagem e óculos escuros.
E devia ter uns olhos bonitos, se bem que lhe parecessem pisados. Por isso, os óculos.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

BAGATELA ENTRE BOCEJOS DE TÉDIO QUIÇÁ CONGÉNITO

Tinha com ele um sonho muito antigo: ver um dia transformar-se em realidade palpável um dos inúmeros sonhos que tinha. Um sonho dos bons, como se treslê, e não um qualquer pesadelo. Como pesadelo lhe bastaria, porque já sonhador crónico, o nojo de vida onde chafurdava desde um crepúsculo ao outro.
Quantas vezes não sonhou ele com a fortuna nas mãos por mercê da lotaria, ou por se descobrir único herdeiro de um império sem mapas que o delimitassem, ou por desenterrar uma jazida infinita ao garimpar nos areais utópicos da bolsa?
Ontem, mal acabara de se aninhar entre lençóis, adormeceu e sonhou que acordaria morto. Enganou-se, porém: já não acordou.