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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

SOBRE A LICITUDE DE UM DESAMOR DE PERDIÇÃO FORA DOS LIVROS

Por um suspiro de paz, dariam a vida. A história do conflito, arrastada desde há gerações, é um decalque de tantas outras que obtiveram de velhos mestres a mumificação literária e estão, ainda, a condimentar o presente. Também esta pode ter fermento na recorrente sementeira de ódio entre famílias ricas, poderosas, gananciosas. Também ela deu azo a paixões desenfreadas, de um e outro beiral, com a mocidade a tentar sem êxito ser maior que a ruindade macróbia, e resolvidas a tiro, que a soco dói. E também se tornou motivo de divisão e formação de clãs, com o asco de lá do alto a consubstanciar-se em paradigma e a precipitar-se, muralhas abaixo, até ao nível ínfimo do lodo no fosso circundante.
Hoje, das duas famílias rivais, como se uma praga as tivesse corroído e já lhes desse a ver a foice final, ainda restam dois descendentes, um de cada qual: dois velhos feios, horrendos, daqueles cuja idade nunca se diz nem se pergunta, a quem a solidão empederniu o ricto facial e o adiantou como estátua tumular a usar um dia. E reduzidos a esse estado de miséria vulgarizado em ancestrais casarões, brasonados mas sem saneamento, água canalizada, ou mesmo luz eléctrica, e onde ratos e aranhiços, gordos e fartos, morrem de velhos. Alões e cavalos? Traquitanas e trompas de caça? Librés ou cabeleiras empoadas? Tudo se foi na voragem, tudo voou sem asas nem ventos céus afora, como trastes obsoletos de que nada cheira na lembrança ou no oco das algibeiras.
Irredutíveis, cada qual em seu castelo outrora dourado e ora em ruína absoluta, tempo tiveram de depurar e sublimar um tão velho ódio até aos limites. E terão ainda como derradeira ambição não abalar para a viagem última sem o outro o ter já feito. Uma só hora que seja, que seja na hora seguinte àquela em que o inimigo congénito tiver zarpado.
Cansados de esperar um pelo outro, tiveram em simultâneo a ideia de se enfrentar em duelo, até à morte, à moda antiga, ou quase: para que ninguém comprometesse a normal evolução deste projecto comum até estar consumado, dispensariam as testemunhas e as velhorras formalidades para a oficialização do acto. E como única condição prévia, por ambos interposta e juramentada com aprazimento e aplauso, fosse qual fosse o resultado da contenda, nenhum dos dois sobreviveria sequer um minuto ao adversário derrotado.
Concordantes ainda na escolha das respectivas pistolas como armas a utilizar no duelo, e combinando disparar uma só vez à voz de fogo, carregariam cada uma delas com duas balas: ao vencedor, estando por terra o vencido, competiria servir-se do segundo tiro para que a condição prévia, proposta e aceite pelos dois, se fizesse cumprir.
E porque, numa história como esta, pendente sobre o abismo melodramático, não deixa de ser legítimo desejar-se um final feliz, será sempre gratificante saber que aqueles dois velhotes ranzinzas não chegaram sequer a carregar as armas: à última hora, como alternativa, acharam por bem decidir a questão a soco e a pontapé. E então, lá acabaram por morrer ao mesmo tempo, de colapso cardíaco ou próximo, rebolando nas ervas, muito abraçados e a rir, como se desde sempre tivessem sido bons amigos, à gargalhada.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

DE ONDE E QUANDO TER-SE OUVIDOS E NARIZ NÃO É BASTANTE

O tema em debate, caído sem o menor anúncio sobre a mesa e por todos aplaudido, se se não tiver em conta o magote dos que sempre espiolham de esquina, é o da infinitude de boas e más hipóteses a explorar, sem quaisquer pruridos científicos no trato e no intento, nas indecisas profundezas do pantanal representado pelo palavrão idiossincrasia. Que não se tenha por imprescindível elevar ao cosmos o nível de quantos, sem saber, se vejam tomados por cobaias. Dir-se-á até que o mais avisado será não avisar ninguém, ou seja a ninguém requerer licença prévia, acerca de quem se observe ou se comente esta ou aquela característica, aquela ou esta coluna a derrubar na desconstrução consequente deste tipo de conversas. Há que evocar exemplos, exemplares, espécimes determinados pela raridade dos seus contributos entre irmãos de conspirata, em tudo calibrados pelo mais comezinho. Abaixo a vulgaridade e acima o que salte à vista dos olhos, do olfacto, do paladar, do ouvido e do labor dos dedos e demais pele das extremidades com específica função táctil bem demonstrada.
“Lembro-me muito bem dele. Era alfaiate, e tinha o ordinário costume de se peidar, sonoro e agreste, na presença de quem quer que fosse. Sobretudo diante da clientela, inadvertida, no momento de tirar medidas ou de pôr os fatos em prova. Mais entretela menos chumaço, e lá vinha um peidinho a atestar a qualidade da fazenda de lã pura. Ora veja-me lá esta riqueza, esta maravilha de obra, que lhe cai mesmo a matar, nem uma ruga. E zás, aí vinha outro, do caos da criação, a ribombar e a encarpelar-se em eco nos tímpanos boquiabertos do freguês, enquanto o mestre artífice de alfaiataria, um devoto convicto de Santo Homembom, padroeiro da classe, se persignava de boca vedada, de propósito, por meia dúzia de alfinetes presos nos lábios. O riso dele, só para dentro, estava todo nos olhos, lacrimejantes, e no tom rubicundo das orelhas”.
A conversa caiu, como almejariam todos, se se exceptuarem os cujos cuja vocação é sondar de esguelha, na temática mais aprazível, quando o que aqui se imponha seja tão-só intervir, acrescentar, sacolejar mandíbulas, pôr os cães à bulha, deitar lenha ou água conforme o estado das brasas, e no fim sair do prélio aos ombros de quantos à sombra se mantiveram, fosse por opção, fosse por insuficiência de gás.
“Também me estou a lembrar da história do polícia sinaleiro que encaminhava o trânsito a dar traques, com a curiosidade de se tornarem bem mais perceptíveis através das contorções fisionómicas, nele, do que, em quem cá de baixo lhe seguisse a sinalética, pelo olfacto ou pelo ouvido”.
"Mas o que é que essa coisa da idiossincrasia tem a ver com a peidorrice?”–, ouve-se perguntar, numa voz meio virada às avessas por ninguém ter dado grande importância ao que ele mal chegou a perguntar, um oposicionista ao regime imposto pela mesa comandante dos trabalhos.
Convirá informar que a coluna dos cépticos no respeitante ao assunto em debate, os de olhos em viés desde o princípio, foi engrossando, pouco a pouco, e promete generalizar-se. Assim sendo, ninguém se desfaz em protestos, não, quando um dos principais mentores da retranca em relação à temática se põe de pé sobre a cadeira e pede a palavra à mesa, para, com dois peidos de monstruosa contundência, desses de pano grosso a fazer-se ouvir num único rasgão de lado a lado, encerrar, em apoteose de foguetório, esta assembleia.
Em nenhuma das conversas, à saída, reaparece à tona o tema proposto na ordem do dia como único objecto de discussão e análise. E ouvem-se, a espaços, até os grupelhos formados se esfumarem noite adentro, alguns disparos, secos, besuntados de gargalhadas também decrescentes, da facção dos cépticos, vencedores indubitáveis da peleja.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

ASSALTO DA NOSTALGIA À PROPENSÃO PARA A MARESIA E AFINS

Por ora, neste local, o mar está manso e morno. Até apetece entrar nele e nele ficar muito quieto, junto à orla, sentado na areia do fundo, com a água ao nível do pescoço. Tudo metido lá dentro, em banho-maria, menos os olhos, a boca, o nariz, as orelhas. Não parece haver perigo, por aqui, de ondulação tão irregular que de repente atraiçoe quem a um tal remanso se arrisque. E se se desprevenir a inconveniência de vedar os olhos, com a mornidão e a mansidão abraçadas em conluio, e adormecer, talvez o perigo maior nem vá além do transtorno de alguma água engolida como despertador, sempre atenta à demasia de sono a hora imprópria. Mesmo que salgada e não apenas por excesso de sal na temperança.
Estão ambos deitados, aí a meia distância entre as dunas e a linha que a espuma desenha e apaga, incerta, mais acima ou mais abaixo. Cada qual estiraçado em sua toalha, à vontade, de bruços. E de bruços, porque estão nus, é quase certo. Hoje ainda, nem sempre a nudez consegue despir por completo o preconceito em relação a si própria, recatando-se com aquele trapo por cá deixado como herança pelos nossos tetravós do éden. Aqui, o recato é posicional: este estar de borco a lavrar o vácuo, sendo os olhos um motor, fora de bordo, de ignição involuntária. Quando não, vai de manivela.
Apesar de tudo, foi mesmo ela que há minutos, nua de mais para que a sombra caída no areal não enrubescesse, ousou o ensaio, breve, de se sentar entre a farrapada de espuma, não se arriscando senão à beirinha. E não teria ido só verter algo, porque a fisiologia também tem direitos consignados desde o corte do cordão umbilical e até antes, sob a gasta justificação de experimentar a temperatura da água e confirmar a subida ontem prevista para hoje?
Esta é uma daquelas praias que à vista desarmada, de manhã cedo, parecem desertas, inexploradas. Sem a obrigatoriedade da pústula de olhos rapaces como praga. Sem fim, sem nome e sem fama. De todo fora do mapa. Isso não bastará para que não se mantenham ambos, por precaução ou pudor tardio de clandestina erupção, ele e ela, sempre de bruços, lado a lado, dando azo a ânsias agrícolas na leira arenosa.
E é de novo ela, sempre ela, que agora se volta e faz com que o azul cerúleo aparente toldar-se, escurecer, antecipar o véu do crepúsculo algumas horas. Os bicos das mamas, pujantes, temíveis, apontam o rasto dos aviões nas alturas. E as curvas restantes desafiam as ondas e ganham o repto: estas, alheias à brisa que nelas incute arrepios, mal estremecem. Mas terão mais vida que as que o mar empurra, em jeito indolente, pelo areal acima. E ele permanece, voltado para baixo, de charrua pronta a rasgar o chão.
Espojado entre as ervas, no cimo das dunas, qual caricatura de olhos implacáveis a esgadanhar a eito o que esteja à vista, um ancião desdentado, de chapéu e bengala e suspensórios de elástico, finge masturbar-se com a mão canhota, já que a outra, numa tremedeira, segura os binóculos.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

HISTÓRIA QUAL CACHORRO A CORRER ATRÁS DA CAUDA

Havia um velho que adorava contar histórias. E ele até sabia muitas. Tantas, que para as contar todas necessitaria de viver outros cem anos, além dos cem já contados e recontados por quantos o conheciam. E as histórias ouvidas ao velho tinham uma linha comum a aprimorá-las: principiavam quase todas pela clássica expressão era uma vez. Na verdade, só as que o narrador contasse enquanto as ia inventando, como se então as escrevesse num caderno por detrás dos olhos e que tantas eram também, só essas começavam conforme a disposição, o estado de espírito na altura de entrar no desvão da memória, o grau e a qualidade do vinho e bem assim a generosidade do lugar até onde o acaso o transportasse, o silêncio e a atenção de quantos, sabendo-o por lá, acorressem a ouvi-lo.
No que concerne ao enredo, as histórias comportavam gente boa e gente má, vagabundos e trabalhadores, cantores de rua e palhaços a saltaricar, domadores de feras e aventureiros na selva, marinheiros, pescadores, corsários, piratas, detectives e ladrões. E ocorriam em estalagens, tabernas, casinhotos de caniços sem telhado, palacetes, oficinas, estrebarias, currais, prisões, igrejas, bordéis. Lugares longínquos ou ali à mão de quem o escutasse e sonhasse, qualquer que fosse a idade dos ouvidos, poder um dia protagonizar tais histórias.
Sobre o sorriso de verruma em serviço permanente e o nariz vermelhão na ponta, o velho tinha uns olhos vivos, enormes, gaiatos, ridentes. Faziam lembrar um cachopo sem punições adiadas em agenda, sempre a traquinar entre as pálpebras e a dar calor e clarividência às palavras pronunciadas, em voz branda, com dicção perfeita e uma eloquência só comparável à dos antigos gregos na arte de declamar.
Andava o velho de terra em terra, trocando cada história por um naco de presunto com pão, ou um bom copo de vinho, ou uma peça de fruta, uma enxerga de palha onde pernoitar sem pressa nem contas no fim, uma boleia de carroça a poupar as varizes. E quando soava que ele vaguearia por perto, surgiam pessoas de quantos estratos houvesse, de qualquer condição, sãs de ossos e mente ou menos mal em mazelas perpetuáveis à disputa, algo ilustradas ou apenas empedernidas por fora e por dentro dos olhos, resolutas e ágeis ou de todo amorfas ao agir, crentes congénitas ou desde o útero contrárias à massa bruta da canga de nuvens sobre as águas do baptismo.
Era já considerado uma lenda ao vivo, esse velho contador de histórias. Acontece, porém, que até as lendas perduram mais ou perduram menos, tanto nascem como morrem, deixando maior ou menor vinco na lembrança das gentes que por sorte as puderam escutar, encantadas, à noitinha. E ele um dia deu conta, sem o mínimo susto, das primeiras sombras da morte em sôfrega aproximação. Era portanto chegado o instante de embarcar, para que em paz se fizesse a travessia do rio e por lá se quedasse, na outra margem.
Entendeu, por isso, contar a sua última história, antes que o zelo do barqueiro lhe estendesse a mão para o ajudar a subir, quisesse ou não. O barqueiro, impaciente, já só lhe concedeu o tempo exacto para que a história, ficcionada na hora ou de molde ancestral, pudesse sair. Mal acabada que se dissesse a narração, embarcariam. E então, após tossicar um derradeiro pigarro e remolhar a fala e as ideias com um bom trago tinto de conforto, o velho contador de histórias começou:
“Havia um velho que adorava contar histórias. E ele até sabia muitas. Tantas, que para as contar todas necessitaria de viver outros cem anos, além dos cem já contados e recontados por quantos o conheciam. E as histórias ouvidas ao velho tinham uma linha comum a aprimorá-las: principiavam quase todas pela clássica expressão era uma vez. Na verdade, só as que o narrador contasse enquanto as ia inventando, como se então as escrevesse num caderno por detrás dos olhos e que tantas eram também, só essas começavam conforme a disposição, o estado de espírito na altura de entrar no desvão da memória, o grau e a qualidade do vinho e bem assim a generosidade do lugar até onde o acaso o transportasse, o silêncio e a atenção de quantos, sabendo-o por lá, acorressem a ouvi-lo”.
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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

NOTÍCIA SOBRE UM PUNHO ESQUERDO SEM CRÉDITO EM PARANGONAS

Começaram por descalçá-lo, dando de imediato um passo de metro à rectaguarda, de tão explícito ser o fedor condensado naquela indefinição entre sapatos e alpercatas. Já devia estar na água há umas vinte e quatro horas, no mínimo. A barrela, contudo, como se concluiria pelas gelhas de quantos narizes investigadores o observavam, não desenvolvera efeito algum neste caso em mãos. Dir-se-ia até que lhe apurara os odores anteriores ao estranho trambolhão – acidental? propositado? perpetrado por outrem?– em pleno lago dos patos. Ninguém poderia afirmá-lo, isso não, não tendo qualquer noção prévia do pivete, para comparação com o que agora é manifesto, por ele já transportado na altura.
Entretanto, já despido, desde a evidência da calva prematura ao negrume do sabugo das unhas dos pés, e isto a chamar-se roupa àquele nojo de farrapos que o envolviam e logo depois seriam levados a queimar, não se lhe vislumbravam sinais de violência recente. Equimoses antigas e cicatrizes de formatos vários, um ou outro hematoma, e tudo isso produto de outros tombos sem registo em chão mais firme que a pele. Nada que para já levantasse a suspeição de crime e fizesse desencadear os usuais procedimentos. Nunca deixaria, ainda assim, de ser submetido a autópsia. Mal a alvorada irrompesse.
Só a estranheza daquele punho, o categórico desafio daquela mão esquerda, hermeticamente fechada em torno de algo e a fincar-se contra todos os esforços no sentido de lhe arrancar o segredo, não negava engulhos ao fervor especialista em tão delicada matéria. Valeria o trabalho cortar-lhe os tendões, na zona do pulso, para que os dedos, quando libertos das cordas que à cega obediência em vida os trariam bem amarrados, se pudessem entreabrir e revelar que conteúdo justificaria tanto empenho? E conseguiria tal truque vencer nós empedernidos pela morte? Não seria mais aconselhável recorrer desde logo à intervenção cirúrgica objectiva, qual cesariana em barrigas mais ciosas, e fazer aquela mão esquerda parir sem dor o que a teria prenha não se sabe por quem ou por quê?
Resolveram os técnicos, por maioria, não lhe destruir a mão, e deixá-la ir para as profundezas da terra com o tesouro que nem as radiografias souberam desenterrar. E só poderia ser esse o tema comum a todas as opiniões e todos os convivas integrados no cortejo fúnebre, tendo em atenção que nunca um qualquer vagabundo, um biltre sem nome nem meios no meio autorizado, teria tido tanta gente a acompanhá-lo, com um certo ar festivaleiro, até aos portões do além.
Correndo o risco de se ser macabro, interessa contar que, no dia seguinte ao do enterro, o cadáver apareceu desenterrado e com a mão esquerda decepada, ou seja sem ela.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

EM CHÁVENAS ESBEIÇADAS DE VELHAS À HORA DO CHÁ DAS CINCO

Sabia-se, há cem anos, que ele não chegaria a velho. A nunca bem explicada maleita que lhe levara o pai, bem como o avô e o bisavô e o pai dele e o pai do pai dele e por aí abaixo, até aos primórdios da treta da maçã mordida no pomar original pelo nosso primogénito, o levaria também. Morreu aos cinquenta anos, na data em que os completou. E porfiou em deixar por escrito, em documento lavrado e reconhecido num tabelião, para clara informação de quantas gerações vindouras acerca do tema se perguntassem, a notícia desta fatídica sentença já milenária: nenhum varão nascido no ventre da família viveria mais do que meio século. Ou um dia que fosse, uma hora, um pérfido minuto contado ao contrário, como no lançamento de foguetões contra a paz do firmamento, para dar mais ênfase ao acto de devolver ao pó, pela totalidade, aquilo que no pó terá tido gestação e aparadeira. E se já se sabia, há cem anos, que ele não dobraria o cabo do meio século, foi só esperar e tomar nota de mais um caso na história.
Também se cumpriu o anunciado, entretanto, no respeitante ao filho dele, que ao atingir as cinco décadas se fez ao oceano das trevas, por onde hoje andará a navegar à bolina, decerto, consoante quem o evoque. E sobre igual rota e contra ventos semelhantes zarparia o neto, à hora de não ir adiante, haverá já vinte e cinco anos de ondas enroladas em si próprias como tão bem sabe mandar a natureza.
“Eu sou bisneto. Farei hoje cinquenta anos, às cinco horas da tarde, e penso dar uma festa. Não quereis vir?”

domingo, 11 de fevereiro de 2007

MERA PRESUNÇÃO DE COMO SE FAZ UM MONSTRO DE VENDER JORNAIS

Naquele tempo, agridoce e ranhoso, em que os catraios ainda eram obrigados a fazer os próprios brinquedos, um havia que não tinha grande jeito, fosse qual fosse o mester desafiado na intenção, qualquer que fosse a ferramenta a amaldiçoar entre lanhos e sangue a sério, quente e vermelhão. É que há mãos e mãos. Sempre houve. E há olhos e olhos. E há-de haver quem seja parido ao contrário dos demais, de pés apontados para a luz do dia primeiro, em ostensivo repto às leis que delimitam a vida e a tornam em campo de treinos para uma única prova que nunca chegará a realizar-se, seja por falta de tempo, seja por aquelas faltas cuja enunciação se escusará sob as useiras reservas do pudor.
Dos outros, cuja zombaria lhe doía mais que a hora de jantar passada em branco, pouca ou nenhuma ajuda obteria. Cruéis como carrascos sorridentes no momento de puxar a alavanca última, os ganapos não costumam perdoar malnascenças tão palpáveis como a evidência da inépcia, a pequenez relativa, o raquitismo, a feiura monstruosa, a escuridão da pele, esta ou aquela deformidade, ou até a fantasmagoria da pobreza pura e simples, quando abaixo de limites em que já só o escárnio a acompanha. E achincalhar um pobre, um feioso, um escurito, um baixote e um inábil numa só penada, tudo num único ser acondicionado por diversos? Uma preciosidade tão rara como ver chover ao invés, da terra para as nuvens. Ora, sabendo-se de um exemplar assim, ao dispor do sarcasmo circunvizinho, mais não há que apertar o cerco e atacar ao primeiro sinal de irrequietude manifestado pelo bicho.
Nunca aquele trambolho teve uma trotineta que se visse, um barco de corcódea talhado a canivete para vogar nos charcos da chuva, uma simples fisga de ir aos pássaros, sardaniscas e cobras, um arco de pneu com gancheta de arame, um flautim de caniço sem escala possível, um pião malandreco com bico mortífero. Nunca aquelas mãos tiveram brio e entendimento que o poupassem à chacota e à pancada ministrada por mãos outras, dos que nasceram prendados, ou sem necessidade de aprender como se prega, serra, desbasta, lima, perfura, corta, recorta, cose, cola, lixa, enlaça, ata, pule, pinta, e se ri e troça ainda de algum tosco, algum néscio a espreitar de longe, que o estar próximo de mais poderia ser perigoso.
Estando a sós consigo, um dia, carregou a espingarda do pai e saiu de casa. Quantos encontrou, quantos abateu. E no fim matou-se, com um tiro na boca, carregando no gatilho com o dedão grosso do pé esquerdo.
Faltava ainda dizer que, além do já dito, ele era canhoto.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

TELA ROMÂNTICA ACERCA DA VIRTUDE DE QUEM ESPERAR SAIBA

A senhora vestida de negro entrou. Olhou tudo em volta, com atenção de quem prefere manter os óculos na carteira, como se viesse em busca de algo ou de alguém que bem saberá não estar por aqui ou sequer próximo. E opta por uma das mesas fronteiras às portas de vidro para o jardim, através das quais se podem ver áleas de árvores frondosas e canteiros de flores exóticas, deslumbrantes. Se alguém, lá fora, um metro abaixo do nível do salão principal, admirasse a profusão de cores e o esmero do jardineiro, teria ensejo de ver uns joelhos bonitos, arredondados como promessas a cumprir sem qualquer data em mente, conscientes da graça que o realce da roupa escura lhes confere. Mas é muito raro haver quem aproveite a paz e a retemperança de deambular pelo jardim. E é pena.
Olhou sem olhar o teor da ementa que, solícita, logo lhe caiu nas mãos, e pediu o habitual, mostrando ser cliente tão antiga como a casa, desde a primeira hora. E enquanto desdobrava o guardanapo para o pousar no regaço, cruzou as pernas. Se o jardineiro, por sorte, andasse ali perto a trabalhar, e apesar de já se pensar idoso de mais para fantasias, não se tiraria do canteiro que acompanha a parede e sublinha o gradeamento do varandim, onde se perfilam, benévolas, as portas de vidro e o deslumbre das flores nelas reflectido.
Em frente dela, da senhora de vestido preto, o lugar ainda se mantém vago. Mas é como se estivesse ocupado: a mesa está posta para duas pessoas. A qualquer instante, pela insistente procura das horas no pulso, poderá aparecer em praça quem ela espera há pelo menos trinta anos.
Ainda o jardineiro seria um rapazola e se escondia por detrás das sebes, a fazer bem se calcula o quê, e já ela ali se sentava, neste mesmo cadeirão onde hoje– rainha com direito a trono e coroa, manto e anel– se senta e aguarda o seu rei, entretido entre cruzadas às terras prometidas a outrem. E nunca outro pretendente o destronou. Nunca outro ocuparia aquele lugar vago em frente dela, na mesa, nos olhos, no pulso nervoso de nunca serem já horas. Nem outros joelhos tão bonitos, assim arredondados como promessas a cumprir sem qualquer data em mente, se sentiriam tão cobiçados, através da benfeitoria daquelas portas de vidro, desde a tranquilidade do arvoredo e o exótico deslumbramento ajardinado.
Quando, como já parece entrever-se, a casa for demolida e o jardim se transformar numa semeadura de seringas e pus de furúnculos sem cura, talvez esta senhora do vestido preto se decida a levantar o luto e a juntar-se ao jardineiro, por quem ela até sabe ser amada e desejada há pelo menos trinta anos de tesoura em punho.
Não se sabe é se ela sabe que ele já morreu há um ano. Nem se supõe quem é que agora trata tão bem do jardim.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

PERAMBULAÇÕES ONDE O IMAGINÁRIO É MATÉRIA-PRIMA E DESCULPA

A fronteira é mesmo aqui. Foi considerado este riacho como limite natural. O carreiro de pé posto, impresso na folhagem desta banda e da outra por nem se sabe quantas gerações de contrabandistas, leva quem venha a passar sobre uma fileira de pedregulhos que brotam da água de dois em dois palmos, fingindo-se ponte e não sendo deveras ponte nenhuma. Com eles se evita, porém, o desconsolo de encharcar os sapatos ou de ter que descalçá-los antes do salto, para lá ou para cá.
Muito poucas vezes se vêem, mas vêem, de noite e de dia, nas redondezas de ambos os lados, guardas fronteiriços armados até à alma de cães, que quando a festa é rija costumam trazer como suplentes. Reconhece-se e disso se faz cartaz que em já distantes eras se faziam por este ponto enormes transacções, quer de droga, quer de material roubado, quer ainda de gado e de gente contratada a peso para as jornas mais detestáveis, lá no sul, onde nem o sol é gratuito.
Há que estar com atenção ao canto dos pássaros. Eles têm o bom tom de dar sinal, emudecendo, quando sentem guardas emboscados ou em aproximação, de onde se infere que nem eles gostarão da canzoada, fardada ou genuína, como é fácil de perceber e acatar. Mas ainda haverá quem goste de se ver encurralado, esmurrado, esmordaçado e engradado, e isto se se tiver a fortuna de não levar um tiro nas costas, se bem que dado para o ar, durante a perseguição?
O carro, por não haver estrada, já não pode seguir além deste sítio. E ir a pé, sendo incómodo, dá menos nas vistas. Bastará um razoável par de binóculos, agachado num qualquer refojo destes cerros penhascosos, ou a mira telescópica de uma boa carabina, para controlar todas as movimentações tidas como dúbias num ermo assim, tão distanciado já das últimas casas de gente. Bem melhor será esperar, com paciência, e dar um salto até lá de madrugada, apesar do frio…
“Tu não tens frio? Guarda o mapa e vem-te deitar”.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

CRÓNICA DE NOVA MORTE ANUNCIADA EM VERSÃO MÍNIMA

Nenhum dos amigos mais de dentro. Nenhum dos colegas de trabalho com quem por força das contingências profissionais mais convivesse. Nem a mulher, companheira na cama fiel da fruição de quantas noites de sono ainda o embalem, todas ou quase. Nem mesmo as amantes, duas ou três, de remota data ou de alternâncias tão recentes como a incógnita de as trazer saciadas, ou tão-só acomodadas. E nem o mais anónimo dos figurantes obrigados ao palco desta indestrinçável tramóia a que se chama, com alguma pompa para ofuscação de nódoas, vida comum. Ninguém, por delicadeza, se dera ao cuidado de o ouvir. Ninguém se apercebera do recado inscrito nos olhos, primeiro, bem como na fuga ao assombro de outros olhos em amistosa auscultação, depois, e, por fim, nas palavras.
“Eu irei a enterrar no próximo sábado”– dissera ele, com um sorriso sem remetente nem endereço certo, ao chegar a casa, vindo do emprego, e ao chegar ao emprego, vindo de casa; ao sentar-se à mesa, no café, entre crónicos comensais da bola e de gado fêmeo a marcar de ferro em brasa; e ao dar um pulo, numa única jornada, a cada um dos diversos covis nocturnos onde o nome dele era senha de acesso e consumo.
Que ninguém dissesse que ele não tinha dito, de forma clara e transparente, que pensamentos o mantinham. Que ninguém ousasse o subterfúgio de se proclamar inocente em relação à notícia posta por aí a esvoaçar sem que asas houvesse. E que ninguém viesse a justificar a falta sob caução de uma pontual ignorância, quando até o coveiro fora avisado da conveniência de afiar a ferramenta, considerando a actual falta de chuva e a pressuponível rijura dos torrões a desfazer.
Hoje, sexta-feira, dia aziago para quem em tais manhas gaste o tento, não faltarão vinte e quatro horas para que o desígnio se faça cumprir em conformidade. E ele aí está, no esquife, já emalado, bem composto e bem afogado em flores sem aroma nem borboletas a fazer pela vida.
Estando ele a olhar lá por detrás das pálpebras não se sabe o quê, o que pensará fazer, se algum dos inúmeros notificados faltar ao cortejo desde há dias anunciado para amanhã?