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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 30 de maio de 2006

VARIAÇÕES EM RÉ PARA TUBA E OBOÉ

Apenas disse “já venho”, ao levantar-se da mesa.“Vou até ali ao café”, complementou, ao abrir a porta e sair. Um ano depois ainda não tinha regressado a casa. Dez anos mais tarde, nada de nada se sabia. Quinze anos recontados, e tudo igualzinho em notícias. Ao fim de vinte anos, que hoje se assinalam, alguém bate à porta.
“És capaz de me dizer por onde andaste?”– pergunta ele, de avental e esfregona, alagado em suor, como se tivesse acabado de limpar a casa toda desde o soalho ao tecto.
“Eu não te disse que ia até ali ao café?”– responde ela, empurrando a porta e entrando, de cigarro na boca e jornal debaixo do braço.
Serve-se de uma bebida, e só então se dá conta da ambiência da sala, festiva mas discreta: as jarras com arranjos de flores ainda apelativas, umas tantas serpentinas do candelabro central até aos quatro cantos, música tropical a mal se ouvir, a mesa posta para três pessoas.
“Estamos à espera de alguém para jantar?” – pergunta ela, sorvendo um gole e repuxando uma fumaça de lá do fundo, para depois a lançar contra o espelho emoldurado, onde se vê reflectida e se admira entre a nuvem, qual deusa triunfante sobre a bocarra do vulcão, com um ar jactante, presumido, macho.
“Não me digas que te esqueceste de que o nosso filho faz hoje dezoito anos”, diz-lhe ele, de mãos na cinta, à moda das varinas a regatear o produto exposto na canastra.

segunda-feira, 29 de maio de 2006

SAGA DE UMA MOTORETA COM UM VELHO MOTOR A DOIS TEMPOS

Saiu de casa, como sempre, às sete e um quarto. Ela, que se levantara para lhe preparar o café, ter-se-ia deitado outra vez, por mais alguns minutos. Ou será que não?
Quando chegou ao cimo do monte, sobranceiro à aldeia, deu a volta à motoreta, desligou-lhe o motor, e tornou a descer toda a ladeira, em ponto morto, sem bulir um traque de motor já gasto. E estando já cá em baixo, largou a mota num canto, aproximou-se de casa, que nem assaltante a urdir o golpe, passou adiante e foi esconder-se entre os salgueiros, junto ao ribeirito que lhe delimitava o quintal. A alguns metros, havia um simulacro de ponte – um tronco de árvore, alisado à unha, com serra e enxó, e pelos pés mal calçados de quatro ou cinco gerações a eito –, que o ligaria à outra margem. Ou que ligará a outra margem à de cá, o que não vale o mesmo, conforme depois se há-de concluir pelos eventos em agenda mental, por enquanto.
Minutos depois, aí uns dez ou onze, viu um fulano, que não conhecia, agachado, a vir até ao exacto lugar onde ele se tinha escondido, e a esconder-se ali também. O sujeito, ao descobrir-se a descoberto em flagrante, não se quis dar por achado, como soe dizer-se. E, decerto nem imaginando com quem é que estaria a falar, atreveu-se inclusive a perguntar-lhe se ele também ali estava para ver o espectáculo.
“Claro”, respondeu-lhe, procuranto não se denunciar através da fala, já que através dos olhos seria muito difícil, para não dizer impossível e sempre doloroso.
“Falta um quarto de hora”, diz o outro, alardeando toda a experiência anterior e um perfeito conhecimento dos passes e do enredo da peça em representação naquele palco.
Quinze minutos mais tarde, pela ponte, apareceu um indivíduo – este sim, seu conhecido –, que ao chegar ao pátio da casa tossiu alto e se foi estender na relva, ao lado do riacho, a não mais de cinco ou seis metros do improviso de mirante onde os dois se empertigavam para não perder pitada.
Breves segundos após, alva, leve, esvoaçante, só com uma camisa de dormir quase transparente e descalça, apareceu ela a saltitar e logo a enrolar-se ao lado do amante, e por debaixo dele, e por cima, naquele relvado de espontânea macieza, tão ao jeito de qualquer leito nupcial em histórias de amor a metro.
Já eles iriam, os amantes, a atingir os alicerces da Via Láctea, quando um galho seco tomou a palavra, ao sentir-se pisado por um dos dois “espreitas” dos salgueiros. Como descrever o quadro seguinte? Com que palavras narrar a aflição da mulher, seminua, entre o amante e o marido? E como dar notícia do desespero deste, perante a traição da mulher, ali, a cru, com o patrão dele? E como justificar o desempenho do terceiro macho presente, que, num frenesim, de olhos revirados, em êxtase, nem se apercebendo destas últimas cenas de revelação e estupor, continuava a masturbar-se à frente de tudo e de todos, até à explosão do orgasmo que fez transbordar o ribeiro?
E foi ele mesmo o único a obter prazer concreto com esta história, para além do autor, este vosso criado.
(Escrito em Guiães, aos 28 de Maio de 2006)

domingo, 28 de maio de 2006

O ESTRANHÍSSIMO CASO DO SUMIDOR QUE LEVOU SUMIÇO

O morto teria dito, ainda em vida, que não gostaria de ser enterrado ali. Naquele cemitério e naquela campa, onde a mulher esperaria por ele há cerca de vinte anos.
Os filhos, dois, porque não perceberam as razões do velho, trataram de tudo como se ele nunca houvesse dito nada acerca do assunto. E ainda houve quem chamasse a atenção do padre, no sentido de que a última vontade dos moribundos não deve ser ignorada. Mas o padre limitou-se a encolher os ombros, em nome de Deus, e a dizer que os filhos já eram adultos, bem casados, homens de bem. Saberiam como proceder em conformidade. O programa previsto cumprir-se-ia.
Foi dito ao coveiro que reabrisse a cova, retirasse o caixão da mãe e guardasse as ossadas noutro caixão, mais pequeno, que seria outra vez enterrado com o caixão do pai. No relativo às saudades expressas no epitáfio, seriam repartidas, a partir daquela data, por ambos, papá e mamã. E que um dia viria, mais tarde, em que seriam eles, os filhos, a deitar-se ali, para repousar até à eternidade. Quando tudo ocorra em seu tempo exacto, tudo estará bem quando bem acaba.
Não acabou. Ao levantar o caixão já ali residente há vinte anos, meio desfeito, o coveiro verificou que dentro dele nada havia. Ou melhor: havia calhaus, torrões e vermes. Nada que tivesse tido vida e sangue e ardor carnal, e que agora se resumisse a uma caveira sinistra e a um montão de ossos sem nexo nem lugar próprio.
Relembraram alguns, os mais velhos, que de facto nunca tinham visto a morta depois de morta, aquando do funeral, há vinte anos. E que o caixão exposto no velório sempre estivera fechado. E que ninguém estranhara peso a mais ou a menos no transporte à mão, já dentro do cemitério, até ao fosso final.
Não se trataria de um caso de homicídio qualificado, perpetrado pelo marido, com ocultação de cadáver? E o médico e a certidão de óbito que engatilharam uma embolia pulmonar como causa de morte? E a agência funerária que vendera a urna e tratara de preparar e vestir a morta? Tudo questões de pormenor, sempre fáceis de ultrapassar no mercado negro dos subúrbios civilizacionais.
E se se tratasse de um evento miraculoso, como o de Cristo, depois da inglória morte no Calvário? Teria ela ascendido aos céus de corpo e alma, tal como se diz ter acontecido, há quase dois mil anos, ao filho de Maria e de José, carpinteiro, seu brando e resignado pai adoptivo?
A polícia, posta em campo, tudo farejou, tudo revolveu, mas nada encontrou. E se não houvesse crime de morte? E se se reduzisse a um mero caso de fuga disfarçada, para salvaguarda de brios malferidos, com um funeral a sério? Fosse como fosse, a quem pedir contas, hoje, vinte anos depois? E se não morreu, há vinte anos, onde estaria ela agora e a fazer o quê, longe dos filhos?
A estranheza atingiu o seu auge, entretanto, quando o mais novo dos dois filhos veio a morrer, de acidente, ao cair num poço sem água. Uma vez retirado do poço e após o cumprimento das formalidades legais, seria enterrado na campa familiar. Seria, sim senhor, mas não foi. Acontece que do corpo do pai também lá não havia sinais. Sequer um cabelo ou um botão de camisa.
Começando já a preparar o desfecho desta espécie de história trágico--marítima em versão terrestre, informe-se que o outro filho, o mais velho dos dois que eram, num curto espaço de tempo enriqueceu a vender medalhas com as fotografias dos pais e até do irmão, a dar entrevistas em exclusivo a todos os jornalecos sensacionaleiros, a participar ao vivo em programas radiofónicos e televisivos de culto igual, como e enquanto derradeiro bastião de uma sagrada família, e a receber, lá em casa, excursões sobre excursões de romeiros àquele já afamado lugar de milagreira propensão.
O pior foi quando, uns meses depois, caiu uma ovelha transviada do rebanho no mesmo poço onde tombara o mais novo. A ovelha não se finou do trambolhão, e tanto baliu, que a foram tirar de lá. Na lama do fundo, porque chovera há pouco tempo, estavam duas caveiras, já limpas de pele e de ideias, e uma terceira, em já adiantado estado de decomposição do que em vida teria tido por fora e por dentro dela.
Claro que o mais velho foi preso e está a pagar pelo crime em que se tornou sócio do pai, ao arrancar-lhe, num dia de vinho ao nível dos gorgomilos pensantes, o segredo da morte da mãe.
Mas os peregrinos continuam a afluir àquele santo lugar.
(Escrito em Guiães, aos 27 de Maio de 2006)

quinta-feira, 25 de maio de 2006

LUCUBRAÇÃO DE SOFÁ SOBRE A MEMÓRIA

Os condimentos habituais: noite, avenida à beira-rio, algum frio no ar. Duas putas, sem horário declarado nem sindicato, ao ataque. E ao fundo, por detrás do pano, uma ponta de cigarro a ser farol e cordel amarrado ao dedo como lembrete. Não raras vezes, um noitibó mais temerário arrisca-se a vir à boca de cena demandar produto e preço. E passa uma vez, passa outra, até que pega na deixa e prossegue o texto. E quando o carro se afasta, pela esquerda alta, o farol aviva-se como chama de isqueiro ao dar lume a outro. Será a melhor forma de controlar o tempo de cada serviço, esta unidade-cigarro. Nunca mais que três unidades, amor. Estamos entendidos?
Também se podem desenrolar cenas tristes, como as da bófia a saltar da plateia para o palco e a levar as protagonistas. A bófia tem destas coisas: de vez em quando, arma-se em séria e arreganha os dentes, só para que lá de cima a ouçam rosnar. Na negridão por detrás do pano, em tais alturas, nem um cigarro se acende. Não há farol que resista ao mau hálito da lei armada em dona das trevas. E quanto ao cordel, que se amanhe quem tiver dedos e língua com que bater umas pívias aos carcereiros.
Na noite a seguir, com a mesma avenida, ignara, por cenário, com o mesmo frio a tornar-se vapor em narinas tumefactas, sempre há-de continuar este auto em cartaz. Uma das artistas terá um olho roxo, que nenhuns óculos pretos de ceguinho esconderão da vista.
E à sombra do pano de fundo, enquanto relógio de ponto ou luz de presença, tanto faz, os cigarros hão-de suceder-se e interligar-se. Sem direito a pausa. Sem regra. Tão tenazes, que nem chuva indesejada. Bem vistas as coisas, um chulo também é gente.

(Caia o pano)

terça-feira, 23 de maio de 2006

TRÊS MODOS DE VER FINCADOS SOBRE UMA SÓ PANORÂMICA SUICIDÁRIA

«» «» «»
1- Senta-se, como é já seu hábito antigo, no mesmo banco de madeira junto ao rio. Quantas vezes, até hoje, não se sentou ele ali? E quantas mais se sentará? O rio, imponente, quase imóvel, pouco ou nada liga às inquietações de quem aqui se sente, e sinta, mais ou menos vezes. A missão dos rios, nesta vida, será outra: lavar os olhos e o tento de quem assim os espreite a passar.
Levanta-se agora, como se uma repentina decisão lhe desse vento às velas, e começa a encher os bolsos de pedras, muitas pedras, todas as pedras que encontra. Depois, olha em volta, mais para ver se não vê ninguém do que para ver se alguém o vê, e deixa-se cair do cais, qual estátua de ditador derrubada pelos ditadores inimigos. À superfície quase não ficaram indícios de que algo, ou alguém, ali se afundou.
«» «» «»
2- Sentas-te, como é teu costume de longa data, nesse velho banco ao pé do rio. Talvez nele te perguntes quantas não terão sido as vezes em que aí te sentaste, até hoje, e quantas não pensarás ainda sentar-te. O rio, caudaloso e amolengado, também pouco ou nada se inquietará com as preocupações de quem até junto dele se arraste. Cumpre-lhe apenas cogitar sobre as cogitações de quem, como tu, desse banco se limite a contemplá-lo.
De súbito, como se te tivesse sacudido algo importante de que já te esqueceras, atiras-te a atascar os bolsos todos com todas as pedras por aí a jeito. E olhas em torno de ti, neste entretanto, e não parece que tenhas visto quem quer que seja, ou que quem quer que seja te tenha visto. Por fim, imitando um tronco precipitado da encosta por lenhadores, mergulhas de uma só vez, quase não deixando sinais na película das águas.
«» «» «»
3- Sento-me, como sempre fiz desde que me conheço, num banco tão velho como eu, perto do rio. Não sei já quantas vezes aqui me sentei, como hoje. Nem sei se cá me tornarei a sentar muitas mais. O que sei é que o rio, poderoso e manso, pouco ou nada se incomodará em desentretecer as questões que me proponha. Basta-lhe ir deslizando, indiferente, e deixar-se ver por quem queira vê-lo a passar. Seja eu, seja quem for.
E se eu aproveitasse estas pedras todas para meter nos bolsos? E se eu, de uma vez por todas, me livrasse de mim mesmo e de todas as tropelias que me tenho feito? Ninguém à vista? Até mais ver!...

sábado, 20 de maio de 2006

DOS PENITENTES E DA PENITÊNCIA SEM PASSAR PELO PURGATÓRIO

O padre, já na sacristia, livrou-se das vestes sacerdotais e saiu para a rua. Aquele cheiro a cera, aquela semiobscuridade, aquele ar pesado da talha e dos castiçais, aquele toque de sadomasoquismo comercial no sofrimento expresso pelas imagens, tudo aquilo ele repudiava ao chegar a hora de bater asas e voar sem destino. O fim da missa, longe de lhe trazer paz e lhe permitir o reencontro consigo entre silêncio e meditação, dava-lhe corda às ideias e devolvia-o, pois devolvia, a si próprio. E um homem tão novo ainda. E não se livrava tão-somente da sotaina e dos paramentos: até a existência de Deus, o seu patrão remoto, logo se veria posta em causa, mal ele se metesse no carro e arrancasse em velocidade, sabe-se lá para onde.
"Boa-tarde, senhor padre”–, ouviu ele, vindo do alto, talvez do céu. Mas o céu sempre fica um tanto mais acima que o capcioso sorriso emboscado à janela do primeiro andar. Reconheceu a voz sem grande esforço. Ainda na manhã desse dia a ouvira, através da gradilha, na penumbra do confessionário. E que coisas lhe tinha ouvido, Senhor. Até os pêlos da alma se lhe arrepiaram e lhe sobrecarregaram a mão ao prescrever a dosagem de penitências.
Aceitando o convite, subiu. E quando, quase uma semana depois, lá regressou ao seu posto de trabalho, ali nas cercanias serranas, tinha perfeita consciência de que a consecução do céu nunca passaria pela oração, nem pela subida das altas serranias em volta, mas apenas e só pelo santo sacrifício de trepar, em corrida, os degraus até ao cosmos daquele sorriso pacificado à janela do primeiro andar.

quarta-feira, 17 de maio de 2006

UM MISTO DE NÉVOA E COR DE AVELÃ NÃO DE TODO AMADURADA

Aqueles olhos chegaram à cidade num fim de tarde sem memória, até então, assinalável. Na manhã seguinte, já toda a cidade saberia que aqueles olhos lá estavam. Do nada surgiram e usurparam a ribalta os fastidiosos jornalistas de todos os pasquins autorizados. Todos os canais de televisão até lá fizeram descer, no mínimo, dois microfones e duas câmaras, porque aqueles olhos eram dois também. O senhor presidente reuniu toda a vereação para deliberar e agir com presteza. E os habitantes, sem que nenhuma organização sindical ou partidária parisse a convocatória, lá se foram aglomerando, em cada vez maior número, por todas as praças e pracetas da cidade. A polícia e todas as forças militares e militarizadas entraram de prevenção.
É que sempre há-de haver quem se aproveite do caos que aqueles olhos costumam trazer como bagagem. Haverá que deles aguardar a partida, com serenidade, para que logo após, como já se sabe ser uso, a vida retome os carris e prossiga a marcha interminável a caminho do futuro.
Acrescente-se que nunca aqueles olhos foram vistos por outros olhos quaisquer.

terça-feira, 16 de maio de 2006

CRÓNICA REPENTISTA DE DOIS VELHOS E MAIS UM

Era um desses velhos cuja rabugem, de tão velha, poderá ter nascido com ele. Que ninguém lhe dirigisse a palavra, o seguisse na rua, ou sequer o olhasse, perto ou longe. Também ele não olhava ninguém, não seguia ninguém, e a ninguém dirigia a palavra. Não precisava de quem quer que fosse –, ouvia-se-lhe dizer, uma vez por outra, a falar sozinho.
Numa casa ao lado, igual à daquele, morava outro velho. E eram tão parecidos, que quem não soubesse os diria irmãos gémeos. A única diferença, e não pequena, estava em que este era muito simpático, cumprimentava toda a gente, toda a gente dele gostava e o tratava com respeito.
Era um problema, todavia, distingui-los a certa distância. Quem é que sabia qual é que era qual o que lá vinha ao fundo? Como não cair na armadilha de fazer uma saudação e receber um esgar de vómito em resposta, ou de nem reparar num sorriso escancarado, que depois esmoreceria sem retribuição nem entendimento?
Jamais se teriam encontrado frente a frente. Faziam-se até apostas acerca de qual seria a reacção de cada um deles, se tal encontro se desse. E havia grupos constituídos com um único objectivo: estudar o melhor processo de os pôr de olhos nos olhos, como se se vissem ao espelho, de tão parecidos que eram.
Um dia, sem que se soubesse a causa, o rabugento morreu. E o único que o acompanhou até ao cemitério foi o velho vizinho do lado. Nesse dia, não sorria. Dizem até que chorava. E ficou tão enrabujado, que se mudou para a casa do outro.
Não ficou vaga muito tempo a casa dele: mudou-se para lá um outro velho, que aparenta ser simpático. E já se fazem apostas.

segunda-feira, 15 de maio de 2006

SABONÁRIA EM ÁGUA DO MAR VISTO CADA VEZ MAIS LONGE

O caderno em branco. A já familiar coceira capilar do caderno em branco. Apesar do lápis, mal acabado de aguçar e nele pousado. Em repouso, ambos. E dizer-se em branco, é dizer-se em vão, vazio, oco, inútil, nulo ainda. Ainda aquém do parco intento de ser impulso e gesto e substância e palco a pisar muito ao de leve, qual pas seul de cisne condenado à morte.
Talvez um toque de blues, no feminino, a açucarar a sonolência. Ella, Nina Simone, Diana Krall. O mar remoto a ondular até dentro de casa pela varanda. E o vento nem se vê. Domingo morno de névoas, sem pressa. De quando em quando, também pela varanda, a esterqueira sonora de um motor mais lesto no massacre. E um ou outro guincho de gaivota dizendo-se autorizada a zarpar do cais. O azul não é azul, mas cinza feita de trapos. Logo mais será castanho, quase rubro e roxo ao cair, sem forças, para lá da meta final. E se fosse verde?
Quanto ao caderno em branco, já não está. E só o lápis, esse sim, precisará de lixa ou de canivete e trato em conformidade. Que bom seria se se pudesse aguçar também o dom de pôr as ideias cá fora, no papel da rua, a arejar ou a corar ao sol. Mas hoje não houve sol que chegasse, pronto. Nem sabão.

domingo, 14 de maio de 2006

NESTE PENEDO PRANTADO À BORDA D'ÁGUA

Um indivíduo igualzinho a qualquer outro. De gabardina e chapéu, por ser Inverno. Ou de manga curta e chinelos, porque seja Verão. Ou ainda de bombazina e flanela, porque o Outono ou a Primavera ditem as regras do jogo. Observado num contexto citadino, onde a azáfama de uns e a lassidão de outros se complementam sem mossa, passaria despercebido. Apenas um banal pormenor o distanciava dos demais: caminhasse para onde caminhasse, só o conseguia fazer a olhar para trás. Sempre a olhar para trás. Como se alguém o perseguisse ou ele de trás esperasse alguém. E o engraçado é que nunca chocava com ninguém. Ou quase. Sempre havia aqueles que, só por maroteira, se punham a imitá-lo mas em sentido contrário, e lá acabavam eles a chocar com ele e não ele com eles. Mas isso eram casos esporádicos, se bem que com consequências caricatas e até dolorosas, por vezes.
Ninguém tinha ideia das razões que o conduziam. Qual o porquê da sua obstinação em nunca caminhar olhando em frente. E fosse a que horas fosse, de dia, de noite, madrugada em pleno voo, era vê-lo por aí, de rua em rua, a olhar para trás, sempre a olhar para trás.
Até que um dia desapareceu. Diziam alguns que ele se teria enfiado num bueiro do saneamento cuja tampa estaria fora do lugar. Outros, que esse alguém imaginário que o perseguiria teria enfim aparecido e o liquidara de vez. E outros, ainda, que uma mulher misteriosa, de beleza inalienável, o convencera mesmo a olhar em frente e assim o tornara invisível, escondendo-o sem o esconder ao torná-lo em tudo igual a qualquer outro.
Curioso, agora, é o facto de toda a gente, tentando decifrar onde na realidade se teria metido aquele já carismático personagem, passar o tempo todo a olhar para trás, sempre lá para trás, como se ele tivesse obrigatoriamente que surgir de trás e não de outra parte qualquer.
E não será por isso que, hoje ainda, temos um país inteirinho a olhar para trás?

sábado, 13 de maio de 2006

MUITO BEM FEITO

Recorda-se, de súbito, de que ela lhe tinha dito da janela “telefona quando lá chegares”, ainda ele não se metera dentro do carro. Não estranhou, na altura. Mas estranha agora. Foi a primeira vez que lhe ouviu dizer aquilo. Aliás, viagens de duzentos e muitos quilómetros, como esta, fazia-as todas as semanas, e quantas vezes mais do que uma. Quereria ela ter a certeza da distância a que ele estaria, para se sentir mais segura e dar então corda a algum derriço de outrora em reciclagem? Diante deste quadro mental e por instinto sem imediata explicação, abriu o porta-luvas e verificou que o velho revólver lá estava. E carregado, como sempre.
Resolveu parar ali mesmo, para pensar e decidir entre continuar ou não. Azar o dele: veio uma brigada e multou-o por estar parado na auto-estrada sem aparente motivo que o justificasse. E só continuaria a viagem até à primeira saída onde pudesse inverter a marcha e dar a volta aos seus temores. E se a fosse encontrar na cama com alguém? E se apenas a descobrisse a voar aos céus num banco de jardim? E se tão-só desse com ela de mãos dadas com algum dos amigos lá de casa? E se afinal só a surpreendesse, enlevada, no sofá, a revisitar velhas fotografias e velhas cartas de amor? Que idiotice a dele. Aos setenta anos de idade com ciúmes por causa de uma velha de sessenta e cinco?
Parou na berma outra vez e uma vez mais foi multado.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

SEM SEQUER TER LEVANTADO A PERNA

Noite alta em plena baixa. Becos e ruelas sem uma pinga de gente. Nem sequer um gato aos gritos sob a tortura inquisitorial do cio. Luz nenhuma ou quase. Ao pendurão de janelas e postigos, aqui e além, tristérrimas peças de roupa já encardida muito antes da nascença, procurando trescorar ao sol da noite. E ele, encurvado para a frente, como se tentasse desbravar caminho entre uma multidão de credores desvairados, numa aflição para mijar. Pois há-de ser aqui e já.
Homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família. Quem lhe diria, minutos antes, que aquele gesto de verter contra a parede o sufoco que arrastava, o levaria a destrambelhar de cabo a rabo toda a referida pacatez que até então o denunciava como exemplar, ou seja um daqueles raros cidadãos cujo molde de fabrico se terá perdido nas catacumbas do tempo? Que nem bola de neve a engordar montanha abaixo até ser avalancha e perdição e morte, assim os eventos se encadearam e transformaram na brutal realidade de que ora se faz notícia.
Ainda ele sacolejava o quinquagenário pendente, de alma remoçada pelo alívio, e eis que em plena cabeça se lhe abate uma inequívoca penicada de mijo velho, retrasado, sabe-se lá se deixado a fermentar de propósito para espessar a mistela. “Grandessíssima vaca”, berra ele, cambaleante e meio cego, ao ver e ouvir lá nas alturas a risota chasquinada da meretriz que o emboscara. Só que não seria a vaca mas o boi de cobrição a vir à rua e a pedir-lhe contas pelo insulto, enquanto às demais janelas afloravam mais e mais risotas e chistes e até mais penicos de mijo, recente ou antigo. E deu no que deu, bem se vê, com o bovino a dar com os cornos na calçada, para aprender a não se meter sem aviso com a sisudez de um homem pacato, mais ou menos malcheiroso. E quando por lá apareceu a polícia e o levou, algemado, entre pilhérias e empurrões de fardas novas e usadas, sem dele ouvir a mais pequena explicação, foi quase natural que um dos agentes, um ainda rapazola e tão sardento como ruivo e grandalhão, chegasse sem dentes à esquadra. E foi só uma cabeçada.
Na manhã seguinte, no tribunal, e só porque o juiz se permitiu o descuido de sorrir ao ler o desnovelo dos factos – segundo a versão transcrita no relatório da polícia –, e de manter o mesmo sorriso ao ditar, por fim, a prescrição penal de alguns meses de prisão remíveis a tanto por dia de multa e respectivas indemnizações aos ofendidos, de novo a pacatez arreganhou dentes e cuspiu em plenas ventas do meritíssimo. Como se calculará, foi a prisão bastante agravada, por desrespeito ao tribunal na pessoa daquele seu magistrado, e desde logo tornada efectiva. De nada lhe valeriam os recursos interpostos, nem os súplices apelos da família e dos amigos.
E já na prisão, quando o seu companheiro de cela, um tamanhuras tatuado desde o pescoço às unhas dos pés, o apanhou mais sonolento, de bruços, e tentou valer-se disso para lhe arrancar as cuecas, de imediato ele resolveu a questão com um pontapé nos testículos do entesoado atacante. Volvido o eco do urro, finaram-se as tatuagens desde as unhas dos pés ao pescoço em campa rasa e sem flores nem epitáfio. E ele viu-se transferido, sob medidas de alta segurança, para a ala dos mais perigosos, como perigoso homicida.
Eis o que pode acontecer a qualquer homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família: desencantado da vida ou cansado de a não viver, não resistiu muito tempo e enforcou-se na cela. Há quem diga, porém, em voz de pano rasgado, que ele não se enforcou, não senhor, mas se pendurou pelos tomates e assim veio a morrer, sem soltar sequer um ai, o que foi considerado notável e com toda a justiça se regista nos anais da história do sistema prisional.

terça-feira, 9 de maio de 2006

O CASO DA TROCA DE CHAVES E NÃO SÓ

De regresso a casa, quando se mete a chave na fechadura da porta, nunca se sabe, com indesmentível certeza, aquilo que lá dentro se irá encontrar. Mesmo que não se viva só e se saiba quem lá se deixou ao sair. Ou mesmo que a sós se viva e se esteja certo de que não se deixou lá ninguém. Ninguém calculará, por isso, qual a reacção que virá a ter ao dar com a invasão, que até pode muito bem ser benigna: patifaria carnavalesca de amigos, brincadeira de vizinhos ou parentes próximos, experiência científica para efeitos de sondagem, ensaio policial para vigilância de outras casas suspeitas, simples ataque dos bombeiros a alguma fuga de gás ou a qualquer princípio de incêndio.
Agora imagine-se alguém, depois de rodar a chave, a empurrar a porta e a descobrir lá por detrás uma resistência qualquer. Do género saco de roupa pesadote, sem denúncia de arestas a agredir o soalho. Ou do género humano, nem mais: um corpo, caído sem sentidos ou mesmo morto. Que reacção poderia ter quem quer que fosse, assim apanhado de surpresa, ao ver-se obrigado a forçar a entrada na sua própria casa à força de ombros, e ao tropeçar, por descuido, naquela massa-bruta esparralhada, sem acordo nem identificação à primeira vista, sobre um pantanal de sangue grosso e viscoso?
A polícia não deu crédito à versão apresentada e prendeu-o logo, por ordem do tribunal, sem caução, até que terminassem as investigações e se determinasse a verdade. E a verdade seria tão melindrosa como encantar serpentes sem pífaro: o corpo por detrás da porta, morto havia já muitas horas, era então o do vizinho de cima, que praticara haraquiri ao saber que a mulher o enganava com o vizinho de baixo. E este ter-se-ia enganado no andar e aberto a porta do outro com a chave que julgava ser da sua, mas que era a que ela lhe dera.
Dela nunca mais se soube, e é pena. Consta que era lindíssima.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

CINEMATOGRAFIA DE MANIVELA E LAMPIÃO

O boné branco do chefe de estação fez ouvir a senha, o maquinista silvou a contra-senha, e o comboio partiu, devagar, chiando manso sobre a lisura quase impoluta dos carris. Na gare, como é costume, fica em quem fica aquela sensação de pequenez ante o irremediável, ao ver a gorda serpente metálica a arrastar-se pela noite adentro. E quando ela, a serpente, desaparece da vista, por sua vez engolida pela treva, queda-se no ar o pesadume do dever cumprido a contragosto, mas também o alívio da palavra “FIM” em fim de filme. Não haverá novos episódios a projectar-se em tempos futuros? Não se repetirá esta cena da estação, agora em sentido inverso, com o comboio a abrandar e a resfolegar de tédio ao parar a marcha, qual cobra obesa a vomitar os mil e um escaravelhos que engolira algures? Esperemos que não. É sempre problemático repetir falas e expressões cujo teor tresande a mofo desde a primeira edição da fita em cena, até que outro comboio, ou outra serpente, se faça diluir na aguarela da noite, qual final de filme cujo impacto nos mereça aplausos de pé.

EM TOM ALQUEBRADO (PROPOSTA DE FADO A AVANÇAR UM DIA)

A voz mal se ouvia, e a luz era escassa. Cheirava a desgraça e a fel de agonia. Janelas dormiam, mostrando cortinas de parco recorte e parda brancura. Escorriam as pedras trôpegas da calçada. O tempo morrera por dentro e por fora de quem se lhe unira. Não se via nada, nada tinha vida no assombro em redor. Só portas fechadas. E o homem da banza, em timbre sumido e em escala menor, chorava ao tocar. Que a bruma a levasse, que a morte a matasse, que a tragasse o mar. De súbito, um grito. Uma sombra em fuga através do ar. E ao fundo da noite, entre o alarido de espantos e sustos acorrendo à uma, um corpo a sangrar no chão da calçada. Do homem da banza ninguém sabe nada. Se o mar o levou, se a morte o matou, se o tragou a bruma. Ninguém dele sabia. Só sabiam dela, ali, derramada. Ali, destroçada entre o breu e o medo, num desvão sem nome de guardar segredo, no chão da calçada, num corpo a sangrar. E ao lado do corpo, dormente, pungente, vibrante de raiva e paixão cortante, as cordas agora tornadas num feixe de cordas de forca a matar sem dó, quebrada ao quebrar os cornos da diva que a noite enganara, a banza a chorar nos ecos audíveis às trevas da rua.
Mas... desafinada.

LIVRO DE RECLAMAÇÕES

Acordou sobressaltado. E maior sobressalto o sacudiu ao verificar que o telefone tocara três minutos depois da hora que ele teria combinado com o serviço de despertar. Que grande desaforo. Ainda teve ímpetos de ir pedir contas a quem de direito por tamanha negligência, mas já não podia perder mais tempo. O avião não espera por ninguém. Teria até que acelerar e desde já, segundo a segundo, todos os passos em falta―banho, barba, dentes, roupa, calçado, mala de viagem, prendas, livros de bolso, pasta de documentos, pequeno-almoço, pagamento do quarto do hotel e chamar um táxi―, e também segundo a segundo recuperar, se possível, os três minutos de atraso.
Mas um minuto a mais ou a menos, em horas de ponta, é de extrema importância. De que modo fugir àquele caos de arranques, travagens, ziguezagues, buzinadelas, pequenos e grandes choques e respectivas amolgadelas, insultos, cuspidelas, pancadaria? Só por intervenção do céu num passe de magia milagreira, se milagres houvesse, que nunca houve, ao que se sabe, em casos destes.
Enfim chegado ao aeroporto, os remalditos três minutos―agora é que sim, por milagre de assegurada confirmação―ter-se-iam multiplicado umas quinze vezes no útero do desespero, atingindo pois, e sem fazer grandes contas, a trágica realidade de quarenta e cinco. Três quartos de hora, nem mais nem menos. Não o deixaram sequer aproximar-se dos balcões e portas de embarque. Que poderia dispor de outro voo, no dia seguinte, à mesma hora, com o mesmo destino.
E já no táxi, de regresso ao hotel, ouviu a notícia de que aquele avião se despenhara no mar, escassos minutos depois de ter levantado da pista. E que entre passageiros e tripulação não haveria esperança de encontrar sobreviventes.
Assim sendo, porque agora até tinha tempo para tudo, o melhor seria ordenar ao taxista que alterasse o rumo e de imediato o transportasse à companhia dos telefones, onde solicitaria o livro de reclamações e lá lavraria o seu mais veemente protesto pelos três minutos de atraso no serviço de despertar.

DA ARBITRARIEDADE À INVERSÃO DOS FACTORES

Numa rua quase deserta, mal iluminada e já fora de horas, o homem sensato encontrou-se com um homem que o não era. Sensatamente, cumprimentou-o, como se soerguesse a copa de um chapéu que nem trazia, e procurou seguir adiante. O insensato, todavia, tolheu-lhe o passo e a intenção, implantando-se-lhe à frente, de dedo esticado e apontado ao peito, qual espadachim em pose de arranque.
“Tu nem trazes chapéu”– diz o do florete, acutilante que nem escárnio ante a denúncia do rubor. Mas estava escuro de mais para que o rubor se lhe visse, e que importância teria ter chapéu ou não?
Foi ali encontrado, na manhã seguinte, pelos varredores camarários. Deitado de costas em pleno lajedo, estava ele nu da cinta para baixo e tinha esse ar feliz de quem morra a olhar as estrelas, de contas feitas consigo ainda em vida. O insensato, como se deduz, pois um homem sensato não se poderia perder, fora de horas, em ruas mal iluminadas e desertas. E nunca por nunca ser sem chapéu.

PROÉMIO OU CERTIDÃO DE NASCIMENTO EM DUPLICADO

Embora em tempo serôdio, acabou de nascer, comigo, a minha obra. Seremos só uma e um em simultâneo. Ou gémeos falsos, portanto. Mas coesos. Duas existências saídas de um ovo comum. Paralelas, pois, e todavia derivantes. Como quaisquer amantes, apesar do incesto, em recíproca oferenda de complementaridade até ao fim do fim. E com juramento e tudo. Sangue com sangue. De mãos dadas, na vida e na morte, até que a terra se esqueça de que nem a teríamos pisado ao deitar os pés à estrada atrás de nós. O punho e a voz. O tento e a pena. Invento e avena a tosar à solta por quantos prados nos tentem. Ou espelho e imagem sem original defronte. Quadro em busca de prego e parede onde dependurar olhos desatentos. Boi e arado revolvendo a brutidão comestível de quem por acaso nos leia, que não do pão para dentes liquefeitos.