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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

TREZENTOS E SESSENTA SEM HISTÓRIA E CINCO A MERECER LEITURA

O vento, lá fora, vindo sabe-se lá de onde e seguindo adiante, em tudo lembra um coro de velhas carpideiras por contrato à hora. Gemebundo e monocórdico em volteios de ininterrupta entoação, traz à ideia a nunca considerada incomodidade dos maus presságios. E também lembrará, a quem entre bocejos e langor lacrimejante se espreguice, a fatalidade de abandonar a trote rápido, porque horas disso vão sendo, a reconfortante mornidão de lençóis e mantas. A não ser que outra mornidão e outro reconforto, secretos, façam largar a galope, e não só a trote, quem de planuras e horizontes tenha fome. E aí, que se cosa e descosa o vendaval choramingas e quem de vendavais se tema e não saia, em velocidade, de casa.
Mão na mão e olhos tontos pela luz de um dia novo ao dispor dos passos, como se caminhassem sobre lume, aos saltinhos, saem da estação e entranham-se na selva de betão e letreiros luminosos e gente. Gente como eles, apressada. Que ninguém desperdice esse privilégio do tempo a olhar para trás ou para a frente. Acima de tudo, o importante é viver o dia de hoje, de estrema a estrema, como se fosse o último. E aí vão eles, com a noite mal acabada de amargar vislumbrável no semblante e na atitude, temerária, quase jactante, de cada qual. Do vento, neste entretanto, já nem sinais. O comboio foi mais veloz que quaisquer ventanias opostas ao plano em marcha.
Precisam de apanhar o barco para a outra margem. É que a vida, ridente, desenvolta, promete prosseguir sem pausas por hesitação ou pavor ao fantasma do dia a seguir, do regresso a casa, da reentrada nos processos vivenciais em que estar vivo é bastante, ainda que morto de tédio e sensaboria. Hão-de ser cinco dias no total, quase uma semana, a fazer apenas aquilo de que até a bicharada, irracional, muito gosta. E quanto aos conflitos inerentes à fuga de ambos, depois se verá como lhes pôr cobro e os ultrapassar.
E já lá vão as ondas desse quase mar que é o rio, bem como o tumulto no cais de desembarque, a correria para o autocarro, o reencontro com o mar, agora a sério, a praia sem fim que a vista confirme, e a providência desta casa amiga, emprestada por alguns dias. Os tais cinco dias propostos sob expectativa, sonhados um por um, um por um planeados na ânsia comum de os ter em mãos. Hoje será o primeiro.
É apenas uma casa de praia, igual a outra qualquer, equipada com aqueles rudimentos que a tornem habitável dois ou três meses por ano, em tempo de férias, ou aquando da cobertura de arranjos, passionais, como o presente. Tem uma cama, um divã já fora de moda, um sofá desengonçado, uma coberta de farrapos estendida num canto? Mais não precisa.
E lá vão eles num sopro, os cinco dias, como se tivessem sido minutos, segundos, ou outras tantas badaladas de sineta sem eco a separá-las, a prolongá-las, de tão repentinas.
Agora, de olhos encafuados numa algibeira ou dependurados nas nuvens e mãos entretidas à procura de suporte válido, há ainda que encarar a fantasmagoria do regresso a casa. A casa de cada qual, entenda-se. A casa onde viverão paredes-meias com a sujeição aos ditames que a grei impõe a si própria, para seu próprio governo, em função de quem prevarique. Arfante, estrídulo, o uivo do comboio dita o fim.
Lá para o ano que vem, com arte e manhas de lebre e cágado em conluio contra a fábula, talvez outros cinco dias, ou mais, os levem a pôr de novo os pés à estrada até à margem de lá.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

DO ABATE DE INOCENTES À VIA RÁPIDA QUE NOS CONDUZ AOS CÉUS

O crime não viria noticiado nos jornais da tarde. Nem mesmo nos de amanhã. A rádio calar-se-ia sobre o assunto. Nenhum canal televisivo espicaçaria a concorrência dos demais com a vanglória de acorrer primeiro ao local e pôr no éter, antes de todo o mundo, a notícia. E trata-se, apenas e só, de um crime de infanticídio em dose dupla.
Também o assassino não seria sequer indiciado, compelido a apresentar-se e submetido a interrogatório. Não precisaria de advogado, qual detergente para quaisquer nódoas. E passaria, um dia, à reforma, com louvores por bem servir e cumprir na caderneta, em paz aguardando a hora de merecer dos céus o acesso à paz perpétua, mas na terra.
As atenuantes pesariam sempre mais que as agravantes, se a acusação conseguisse ter-se de pé, e tudo viria a ser rotulado nos autos como acidental, circunstancial, ocasional, e logo de improvável antevisão e remedeio atempado. Aliás, é de regra que em obras públicas a morte tenha parte como algarismo a mencionar nas estatísticas finais. Neste caso, porém, nada de nada se veria mencionado no relatório, a aprovar com pompa e foguetório condizentes.
Neste entretanto, sem melindre pela cedência, convenhamos que seria deveras difícil, se não impossível, ao funcionário da maquineta camarária no desbaste sazonal de silvas e caniços, adivinhar o exacto lugar onde o passarito construíra o ninho e depositara os ovos, dois, para chocar e parir os tenros filhotes que hoje, pela manhã, ao abalar para a labuta de mais um dia de bicos escancarados pela fome, ainda lá tinha.
Tivesse o homem dado conta da aflição da ave-mãe a gritar e a voar, atordoada, o que faria? Correndo riscos, ela até pousou no toldo de cobertura do condutor da maquineta, para que ele dela ouvisse, estando ali tão perto, a gritaria.
Era enorme o barulho do motor e das canas, despedaçadas, a ranger. E ele, não a ouvindo, matou-lhe os filhos. Dois.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DO OLFACTO A REVELAR MAIS LUCIDEZ QUE OS MAIS SENTIDOS À ESCOLHA

Imagine-se porque a imaginação não tem baias delimitantes da marcha em qualquer direcção um corpo sem corpo. Nada mais que um pedaço de gente, deitado de costas, numa ravina à beira da estrada, e cercado de lixo e moscas, perceptível por umas calças de cor parda, talvez mesmo acinzentadas, e uma camisola de lã em tom próximo. Assinalando uma das pontas do volume, um boné, também ele ruço de muitas chuvas e sol sem substituição atempada. Na outra ponta, umas alpercatas de pano, coloridas pela terra nocturna das mil e uma jornas a monte, tal o aspecto ensebado, repugnante, dessa amostra de calçado que de calçado nunca teve grande coisa. Por debaixo, ou lá por dentro de tudo, nada. Apenas o inequívoco feitio de um corpo, que na verdade lá não está, dado pelo formato das roupas e pela posição do boné e das sapatilhas, e confirmado pelo peso: aí uns mais de cem quilos de matéria imaterial, ou o que se diria um homenzarrão, ainda novo, com tudo à vista de todos e sem nada a ver-se. Não trazia roupa interior? Nem umas cuecas, ou um par de peúgas tão malcheirosas como as sapatas de larápio de galinhas no activo?
Até os jornalistas, aprendizes de olhos febris e língua arfante na transmissão, em primeira mão, da notícia, não sabiam dar conta do achado, se resumido a umas calças de cor parda, um camisolão de malha, umas sapatorras emporcalhadas para lá de qualquer nariz distraído, e um boné velho e coçado. Como gritar ao mundo acerca do conteúdo invisível, cuja forma era evidente, cujo peso de chumbo não enganaria ninguém, cujas características físicas se calculariam como as que vulgares se farão num homem grande e ainda novo? E como fotografar o que se lá não vê? Como filmar e enviar mundo afora algo que à própria palpação se escapa, que ao olhar impede a prova de existência, e que só ao nariz se revela como utente das parcas e pardas peças de roupa, daquele boné desbotado sem que se lhe descubra a cabeça portadora, e sobretudo de tão sebentas alpercatas, apreensíveis à lonjura de anos-luz?
Já se inquiriu e concluiu não haver nenhum desaparecimento de nenhum dos hospícios oficiais, nem da penitenciária, nem mesmo de qualquer albergue de indigentes, e nem de alguma casa particular, abastada ou penuriosa. Mas desaparecimento de quê?– perguntar-se-ão os mais cépticos, desconfiados das campanhas propagandistas em que o latão passa por ouro de lei e é rei o preservativo, em detrimento do amor.
É certo que logo pairaram pelo ar os publicitários, deitando a mão à ideia e com ela promovendo marcas multinacionais de costura e de sapatos, desportivos e de ir à missa, e bem assim de bonés, chapéus e boinas. Conteúdo pressentível à custa do continente–, é o lema que vai vendendo a quem pode o que a maioria não compra, a não ser a prestações e na mentira dos saldos, quando já fora de moda.
Indeglutível, todavia, é o mistério da roupa cheia de nada, do boné sem calva a ser protegida da troça de olhares cabeludos e algum frio, e daquele pivete de morte sem pés sujos que lhe dêem paternidade e vergonha. Acontece que o peso é flácido, obrigando ao esforço em dobro dos braços contratados, a fim de se lhe dar recto destino e assim fugir à verrina de crónicos especuladores, sempre atentos a desatenções.
Optou-se por enterrá-lo, pois claro, em caixão semelhante ao de qualquer mortal na hora de ser pão de vermes, em campa rasa, sem flores, sem epitáfio, sem cruz.
E só depois do enterro se perguntaram: –“Estaria morto?”