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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

UM FAZEDOR DE PANELAS É UM PANELEIRO

Era isto que estava escrito em caracteres enormes, letra de imprensa, a toda a extensão do quadro, quando o professor entrou pela primeira vez na sala de aulas. Os alunos da nova turma, sem faltar nenhum, já estavam sentados nas respectivas carteiras. E havia no ar a sensação de inquietude sobre nervos quebradiços, adivinhando-se que a todo o instante rebentaria uma barragem de gargalhadas, por um lado, e de impropérios impróprios para verter, com água ou sem ela, por outro.
“O autor desta brincadeira”― diz o professor, sereno, forte, olhando os olhos de todos sem olhar ninguém―,“que venha já apagá-la, para que a aula prossiga como se nada tivesse acontecido”.
Nem uma mosca se mexeu. Formigas, se no chão as houvesse, teriam ficado estáticas, de pernas atadas pela tensão ambiental. E mesmo na rua, nas árvores da avenida, os pássaros silenciaram os salamaleques de cortejar as respectivas donzelas, fincando-se à espera, de pé no ar e de asas abertas, do tiro de partida para uma corrida não prevista no programa oficial de festas. E até o ronco dos automóveis se fez diluir no ouvido colectivo, como se agora corressem na ponta dos pés. E se um pó de giz se deixasse cair do quadro-negro, ouvir-se-ia o estrondo do embate nas tábuas do soalho.
Quando o professor se preparava já para arrumar a pasta e desandar dali, a caminho do gabinete director, vê um aluno levantar-se e vir lá do fundo da sala até ao quadro, pegar na esponja e apagar com gestos decididos a expressão verruminosa, tornando ao lugar e sentando-se, sem deixar que os olhos se lhe atassem a outros quaisquer. Nem aos do professor, indeciso entre o interpelar do faltoso assumido e o nada lhe dizer. Como se nada tivesse acontecido―dissera ele―, à laia de remate da única intervenção havida até àquele momento. Nada lhe disse.
Terminada a aula, no entanto, não resistiu. Mandou sair toda a gente, menos o presumível autor da façanha.
“Não fui eu”― responde o inquirido ao inquiridor, forte, sereno, como se a probabilidade de castigo nem de raspão o melindrasse.―“Nem sei quem o terá feito. Só sei que se ninguém avançasse, não havia aula, e lá íamos todos parar ao director, como é costume”…
“Como é costume?”― irrompe o mestre, meio atarantado, repensando os propósitos de se consagrar ao ensino até ao último dos dias a viver consigo, por sua escolha, de consciência tranquila e olhos bem abertos para as surpresas que a vida guarde no baú da ferramenta.
No dia seguinte, em letras pequeníssimas, no canto superior direito, o mais distante da secretária do professor, lia-se, mas só de perto, só de nariz levantado para o tecto e subindo a uma cadeira: "nunca vires as costas ao inimigo; podes ser comido”.
Quando o professor, depois de ler, com dificuldade, desceu da cadeira e se voltou para a classe, não a viu. Dos cerca de vinte alunos, apenas lá estava um: aquele mesmo que no dia anterior ousara a coragem de arcar com a culpa alheia. E foi este que de imediato o informou:
“Já foram andando a caminho do gabinete da direcção. Eu só cá fiquei para lhe dar a notícia”.

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

TALVEZ EM BUSCA DO NEXO DE CAUSALIDADE NO UMBIGO

A ponte é estreita e extensa. Tão extensa, que não se vislumbra deste extremo de o extremo oposto, na outra vertente. E tão estreita, que quem sofrer de vertigens, nem o mínimo passo se atreverá a dar sobre ela. Mas urge atravessá-la, chegar ao lado de lá, vencer a persistência do tremor e do temor à queda vertical no vazio, muito em baixo, no fundo mais fundo da vida antes da morte.
Depois, uma vez ultrapassado o obstáculo da consciência―mais fundo que qualquer desfiladeiro, com ou sem ponte de corda a vencer―, tudo se tornará em planura, livre do enguiço das ribanceiras de impossível dimensionamento sem se tombar lá no buraco. Há que tentar, passo a passo, pisando as tábuas bem a meio, com as mãos sempre agarradas àquele corrimão de improviso, às guias laterais de corda entrançada em corda. Não serão muito convincentes, tais guias…
Alto aí, ouvem-se vozes na floresta, vem lá gente a correr, a correr, a correr, como se atrás dela, dessa gente, mais gente corresse, corresse, corresse, sem que se adivinhe para onde ou por quê.
“Hoje é quinta-feira, dia dez de Agosto”―, diz alguém, algures entre o arvoredo, perto da entrada na ponte, ou onde se amarram as cordas e com elas se fixa, quanto possível, toda a estrutura preênsil.
Está vento de mais para que a travessia se faça em segurança. E ainda há tempo de escolher outro processo de atravessar a ravina sem que o risco esteja presente. Afinal, na berma de lá, que mal se vê deste lado, nem tudo será tão deslumbrante e magnífico como a novidade da luz em olhos nascidos cegos. E no silêncio, que só os pássaros se atrevem a beliscar, ouve-se o cachoar das águas nos rochedos, apesar de longe daqui, a bem mais de trezentos metros medidos numa perpendicular imaginária desde a ponte às profundezas do abismo.
De súbito, há de novo agitação no matagal, há gente que corre numa confusão de gravetos quebrados. E há gente que grita, ouve-se agora, já muito perto dali, a voz vindo de cima para baixo, talvez de alguém empoleirado numa árvore, há tantas árvores à escolha, a escuridão é assustadora para quem estiver sobre a ponte, ou debaixo dela. E vê-se que as cordas estão velhas, corroídas. Não aguentarão esta carga até ao próximo Inverno. É preciso informar o responsável pelo parque do estado a que chegaram as cordas, antes que alguém vá por aí abaixo e se aleije a sério…
“Vê lá se te levantas. Hoje tens consulta no dentista, não te esqueças”.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

DO FUMO NAS CHAMINÉS AO NAUFRÁGIO EM TERRA SECA

O pastor, lá nas alturas apontadas a nascente, com um assobio e dois ou três brados de cajado a zurzir lã, juntou o rebanho e orientou-o em direcção à mata de carvalhos e castanheiros na encosta, escapando-se com as ovelhas e o cão ao braseiro do sol, sem parecença com nenhum outro desde que se inventou a memória.
Recostado em penedos tão ricos de sombra que até o musgo os amacia, puxou das mortalhas e da onça tabaqueira, começando entre bocejos o ritual de fazer o primeiro cigarro do dia. Depois, de maneira tão lenta como o desejo de pensar em algo mais que o perceptível à vista, sacou do isqueiro e deu lume ao inigualável prazer da primeira baforada, de narinas a fumegar, impantes, que nem chaminés de navio mal acabado de partir para a viagem inaugural.
Parece que o cão e as ovelhas, por instinto de sobrevivência, já teriam regressado, pouco a pouco, até onde o sol dardejava, alheios à sombra da mata de carvalhos, castanheiros e penedias com musgo, no instante em que o pastor voltou os olhos bem para dentro de si e deixou cair na folhagem ressequida o cigarro feito à mão.

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

QUÃO BELA E FECUNDA É ELA, A NATUREZA

Ao longe, muito longe, os píncaros da serra maior. E antes deles, com certa impertinência de pueris reflexos, os montes de menor monta, os pinheirais ainda aquém do algoz com um tamanho de fósforo, os tons em progressivo esbatimento consoante a distância ou a vegetação que num ou noutro ponto subsista. E água com abundância, como é de lei nestas terras baixas, onde se desfaz, se aglomera e transforma em solo arável, haverá muitos milénios, tudo o que a erosão vai trazendo por arrastamento de do alto, desde os cômoros menos atrevidos aos socalcos e à massa bruta da penedia das vertentes. E sempre desponta uma fonte, um regato, um ribeiro, um rio a sério, dando azo a ínsuas de terra escura, riquíssima, passível de emprenhar à mínima gota de vida que nela se faça cair.
Nunca antes do fim da tarde, quando não noite franqueada, se pensa que eles alcançarão o sopé da montanha. Só amanhã, com optimismo na previsão, se reunirão as condições ideais para a ultrapassagem do pico, lá muito em cima, à altura das nuvens. Quase no céu.
“E se nós fôssemos de volta”―pergunta ela, arrancando a mochila das costas e atirando-se para a sombra da primeira árvore que lhe surgiu à frente―,“ou nos ficássemos já por aqui?”
Ele, sobre um sorriso enigmático, observa-a de onde está, ainda de pé, ainda no meio do carreiro que os levava, e também arranca a mochila do lombo, deitando-se-lhe ao lado, na erva.
“De facto, com esta caloraça toda, talvez convenha pensar duas vezes, pelo menos”―, diz ele, concordante e amável, sem desligar aquele seu sorriso de tão subtérrea fresquidão, que quase nele se vêem morcegos dependurados no tecto de cabeça para baixo.
Daí a nada, e daí a horas, e daí até à alvorada do dia seguinte, dentro de uma tenda montada à velocidade da luz, e porque o rio passa perto dali, por detrás da profusão de canaviais, a natureza deu azo a ínsuas de terra escura, riquíssima, passível de emprenhar à mínima gota de vida que nela se faça cair.
No próximo ano, sabe-se lá, talvez tentem de novo. Há muitas formas de chegar ao pico e de o ultrapassar. Uma delas já se sabe como é.

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

A OLHO, SEM FIO DE PRUMO NEM RÉGUA DE NÍVEL OU CORDEL ESTICADO

Vamos construir uma história, do princípio ao fim, seguindo todas as normas, mesmo as mais elementares, de construção.
Primeiro, que escolher um bom terreno, tão plano quanto possível, e nele fazer as necessárias marcações. Pode ser, por exemplo, a cama desta mulher, que vive a sós consigo, há cinco anos, mas nem sempre dormirá sozinha. Tem uma filha, ainda miúda, num colégio interno a pagar pelo pai, conforme o acordado após a rotura.
A seguir às marcações, rasgar-se-ão os caboucos, dentro dos quais se assentarão a preceito os alicerces, para que a obra comece a trepar e a consolidar-se, a ganhar corpo. Aqui, sendo fundamento da história em gradual construção, acrescentemos que o desenlace foi doloroso e turbulento, para ambos. Como é vulgar acontecer com os casamentos que comecem por ser ninhos de amor, sem limites pressuponíveis nos olhos mais cépticos, e gota a gota se vão transformando num pântano cuja fundura, se dimensionada, surpreenderia os próprios autores do derrame. Nem um nem outro se coibiram de trilhar descaminhos em que a certeza do regresso era improvável. Nem um nem outro saíram ilesos de tais jornadas aventureiras a lado algum.
Agora, lançados os alicerces como convém e pronta a primeira base de pedra e cimento armado, já entretecido o ferro que será o esqueleto das várias colunas previstas no projecto, comecemos a ultimar estas e a uni-las através de vigas e vigotas de igual composição, e a estrutura estará em condições de receber o tijolo das paredes a levantar. Nunca se soube quem primeiro prevaricou, nem isso importará grande coisa a quem quer que seja. Sabe-se que ela não prestou muita atenção aos avisos das amigas lá de casa, até que a explosão se deu, ao apanhá-lo com uma delas em pleno arreganho de cobrição. E também consta do relatório de contas, nunca aprovado em assembleia, que um dia ele a viu deitada com o mais fiel dos seus amigos. E daí às choramingas do divórcio, não foi senão um lapso de poucos meses, com as escapadelas de qualquer das partes dando mais e mais substância ao processo em promissivo andamento nos editais da comarca.
Levantadas as paredes, prossigamos com o telhado, dando prioridade ao piso, sobre o qual, em oblíquo, se hão-de equilibrar todas as traves de betão, que por sua vez serão suporte das telhas finais. Conseguido o consenso no relativo à criança, cada qual tratou de recuperar anos e anos de vida, num afogo, como se até ali ambos se tivessem guardado, puritanos, no santo sacrifício da abstinência carnal. Ele, mais lesto ou não tão exigente, logo apanhou outra a jeito, entregando-lhe a gestão do viço em vícios treinado desde sempre. E ela, sem denunciar pressa e com maiores exigências no cardápio, apanhou vários e não apanhou nenhum, preferindo viver e não somente fingir que vivia, dando-se de corpo inteiro, com arrebatamento, e nunca se dando a ninguém.
Coberta a casa, sem que se esqueça o ramo de loureiro lá nas alturas e o sacramento do pipo de vinho para o pessoal trabalhador, passemos aos acabamentos, desde o reboco nas paredes externas ao estuque no interior e à pintura por dentro e por fora, desde a fixação de azulejos e louças sanitárias à colocação de portas e janelas ou armários. Já no respeitante à história que em paralelo se construiria, assinale-se que as coisas melhoraram de sobremaneira no relacionamento, apesar de ocasional, da mãe e do pai da criança, que em breve deixará o colégio interno para se juntar a eles.
Apesar de ocasional, dizia-se, com tendência para que passe ao papel e se transforme em paixão revisitada por dois sérios candidatos a um poleiro comum. E parece que combinaram comprar uma casa nova, que, tal como esta história intrometida, ainda agora mesmo se acabou de construir. Oxalá não caiam, uma e outra.

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

PORQUE NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS A NÃO SER A DEMASIA

“Aquela senhora de vestido branco, lá adiante, está ali sentada desde manhã cedo”―, diz um dos funcionários da estação de camionagem ao chefe, que acaba de chegar, enquanto se entretém a mordiscar a ponta do lápis com um ar inquiridor, fazendo contas, urdindo teias, como se relesse mentalmente o último policial comprado dias antes.
“E aquela mulher de preto, além, já ali estava ontem. Nem sei se não terá dormido aqui dentro”―, diz o outro funcionário, também amante dessa literatura específica posta em filme, toda ela recheada de tiros, mortandades, perseguições a alta velocidade de rua em rua, carros a voar sem asas sobre carros que nem sonharão o que seja um semieixo partido, julgamentos com espectacularidade assegurada pelo martelo do juiz, júris desavindos, exemplares condenações. Tudo com direito à posteridade fixada no bosquejo caricatural do desenhador contratado nunca se sabe por quem.
“O que vocês me estão a dizer”― comenta o chefe, olhando as duas, de modo lento, primeiro, e fitando agora os dois, de frente, como se neles desconhecesse a apetência detectivesca―,“é que uma delas, só por se vestir de negro, é uma mulher. E a outra, porque de branco se impõe, tem direito a ser tratada por senhora”.
Os dois, surpreendidos pelo tom quase ríspido do chefe, enterraram o nariz nos papéis e no meio deles desapareceram sem rasto. Se cá pela superfície se tivessem conservado, vê-lo-iam ir do gabinete até à nave principal da estação, dirigir-se à senhora de neve e à mulher de breu com júbilo, oferecer-lhes o braço, ou os braços, qual galheteiro entre o azeite e o vinagre, e levá-las ao restaurante, onde jantaram, onde não estiveram calados um segundo, onde confraternizaram e festejaram o reencontro de ex-marido e ex-mulheres, primeira e segunda.
“E com a actual, vão três”―, diz um dos funcionários ao colega, no dia seguinte, quando a novidade se lhes ofereceu logo à entrada, antes de se sentarem à secretária.
“Talvez ele por tenha uma cama que para quatro, contando com ele”―, sugere o outro, com um sorriso de inveja a vir à tona das ideias que lá por dentro o polvilham de insensatez.
Quando o chefe chegou, já a meio da manhã, e os cumprimentou, não compreendeu muito bem porque é que eles ainda continuavam com o nariz mergulhado nos papéis. Nunca neles verificara tamanho afinco ao trabalho. Não estariam doentes?