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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

DE ENORMES VIAGEIROS QUE AO NOVO IMPUSERAM VELHOS MUNDOS

“A que horas há-de passar a camioneta?”– pergunta o mestre a um discípulo, acabado de ler um texto em que se debulha e condimenta o corridinho dos dias numa vila do interior, sem ambições como esta. A mesma onde em devido tempo foram semeados, fabricados, paridos, e quem sabe se por também não se saberão mortos e enterrados, mais adiante na história algumas jornas, um e outro. Ou um e outros, mestre-escola e demais instruendos.
“Por volta das três e vinte da tarde”−, ia o aluno lançado para lhe responder, quando duas pancadas na porta, mais sonoras porque inesperadas que violentas, deram a deixa ao contínuo, coxo, que aos saltinhos, entre risota e pilhérias só permitidas de fora para dentro, se dirigiu com ar protagonista ao ouvido do professor, lá salpicando de cuspo quaisquer palavras sem asas nem freio contra despistes.
Foi como se lhe tivesse dado, ao pedagogo no activo desde há várias décadas, um fulminante ataque de fúria. Daqueles que só têm por bitola comparativa a grandiloquência do palavrão com que num brado se façam estremecer as janelas, antes de esmigalhar os óculos contra o quadro e largar em voo rasteiro corredores além, despindo a bata e largando-a pelo caminho, tal como os répteis farão à pele velha nas silvas.
Ainda o puderam ver na rua, a correr atrás da camioneta que já lá ia e a insinuar-se em atalhos através de prados e hortas e montes, talvez procurando encurtar o percurso e alcançá-la na lenta subida da serra.
“Ele parece que tem o relógio avariado”–, confessa, por fim, o contínuo, coxo, aos pulinhos apontados para quem lhe escute o rezado sem brados de fúria.−“E pediu-me que o avisasse de quando fossem três horas”.
E aqui, entrecortando a confissão com uma pausa para olhar os auditores, um por um, e respirar fundo, fingiu um infinito suspiro de injustiçado e rematou o discursilho a conta-gotas, de olhos enterrados ao nível do desacerto dos pés:
“Só me lembrei quando ouvi chegar e abalar a camioneta”.
Do velho mestre-escola, velho de mais para que uma correria daquelas, montanhas arriba, tivesse êxito, apenas se sabe que passou o resto da tarde e a noite toda e todos os dias e noites que depois se lhe apresentaram, irredutíveis, a caminhar sem nexo, sem paragens nem desvios pontuais conforme o estado da estrada, em linha recta, de olhos esbugalhados e nariz em riste, com a mira única – confabulam alguns – de dar a volta ao planeta. E é um facto que ele continua a andar, a andar, a andar, sem se saber até quando ou até onde e por quê.
Já reuniu um convénio de cientistas muito entretidos a fazer cálculos, esperando determinar a breve prazo, com precisão cronométrica, a data e a hora em que, daqui a uns anos bem contados, o nosso viageiro circunvolutor virá a pisar de novo as ruas desta vila intestina, em cuja escola leccionava. E como ainda se ignoram quais os seus intentos, se pensará parar de vez ou prosseguir a marcha ao sabor de quantos continentes lhe desafiem o aprumo, há também uma comissão de colegas e de discípulos à espera dele, pretendendo convencê-lo a dar por finda tão inglória batalha contra o tempo.
O contínuo, manquitola, sempre aos saltinhos, enriqueceu a dar entrevistas e parece até que se prepara para escrever um livro autobiográfico.

domingo, 28 de janeiro de 2007

POR POR AÍ SE SOPRAR A TODO O PANO QUE UM ACIDENTE NUNCA VEM SÓ

A saga começara no autocarro. Com dois passageiros apenas, ela e uma velha em que já ninguém repara de frente, logo ele haveria de se instalar no assento ao seu lado. E tão ostensiva e descarada foi a abordagem em voo, que até o motorista deu pelo golpe e passou a controlá-los pelo retrovisor, prestando menos atenção ao volante que ao espelho. Aliás, toda a gente por aí resmói e especula, hoje, que em tal erro humano é que se encontra a causa principal da tragédia: o autocarro entrou em derrapagem sem razão evidente, vindo a despenhar-se do viaduto sobre a alameda de baixo, e eles casaram meses mais tarde, mal tiveram alta do hospital.
A senhora idosa escapou ilesa e também foi convidada para a boda, tendo por única obrigação empurrar a cadeira de rodas em que agora, como produto do tombo no vazio, se apresenta e trabalha o acidentado motorista, vendendo bilhetes na gare de embarque. E diz-se que estes dois, o bilheteiro e a velha, lá conseguirão enrolar-se uma vez por outra, consoante o turno em que o padrinho do nubente já despachado, a ser daqueles de sair de noite, esteja a trabalhar.
Quanto aos quarenta e um passageiros mortos, que seguiam, descuidados e sem qualquer culpa, noutro autocarro, sobre o qual se abateu o que então atravessava o viaduto da alameda de cima, nenhum deles teve tempo de ouvir contar a cena do assédio em marcha por cima deles. Nem terá sido convidado, pelo mesmo motivo, para assistir à cerimónia no civil.
Cerimónia muito simples, diga-se.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

EXPERIÊNCIA À LUZ DE QUANDO O SOL SE PÕE E SE LHE IMPÕE A LUA

Num belíssimo fim de tarde, embora gélido, em que o sol, ao despedir-se, enrubesce e oferece raios e sombras respectivas rente ao chão, sempre se dirá um desperdício estético matar alguém. Esta há-de ser mais a hora dos poetas não suicidas, da meditação reconstrutora, da quotidiana evasão através de grades mentais onde os sonhos sonhem ter corpo de gente e fome de vida ou sede de ser, como se queira.
Se pelo menos o sol já se tivesse ido embora de vez e a friúra do crespúsculo já estendesse as mãos à da noite, aceitar-se-ia como de mais veloz compreensão e até plausível a atitude de empurrar alguém das alturas do sem regresso de um abismo, por exemplo; ou de lhe despedaçar a caixa craniana com um qualquer martelo de orelhas, ao estilo de quem enfrente uma noz mais contumaz que a dentuça comilona; ou de à navalha lhe pôr as tripas todas à dependura da incredulidade, tardia, de já não ter mãos que as devolvam ao seu lugar habitual, ali mesmo por detrás do umbigo.
Todavia, porque tanta luminosidade pode cegar a firmeza de propósitos que o guião original reclamará, pode um autor, às tantas, ver-se tentado a destingir as intenções e a incutir-lhes uma menos agressiva coloração, passando do breu recôndito ao cinza de após labaredas, ou do clamor sanguinolento ao rosa virginal em línguas mudas. E a não matar ninguém, pronto.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

À ANCESTRALIDADE DE UMA PAIXÃO A SOPESAR COM ZAGALOTES

Uma paixão antiga, muito antiga. Quase tão antiga como ele, se já lançado pelos quarenta de celibato a empedernir-se em rugas prematuras mas profundas. Fora ela a primeira fêmea em que um dia − um dia de sol diferente, como se depreende pela luminosidade da cena mantida na memóriapousara os olhos e a ideia com arreganho agrimensor. Não era mais que um fedelho ainda aquém da medida, no entanto, e ela, já em tamanho natural, uma mulher. E que mulher.
Ainda com aquela primeira imagem gravada a cuspo de olear prepúcios ela, de vestido arregaçado meio palmo acima dos joelhos, a demolhar as pernas numa fonte pública –, recolheu ele a malevolência da solidão sem descargas justas em tempo justo, sempre imune à terapêutica ministrada por conselhos amigos e amantes de quem, tal como ele, tanto se amaria a si próprio, afinal. E a velha masturbação, esse estremecido gozo à sombra de cânones nunca escritos mas desde há milénios a ler e reler à mão por cada qual em si mesmo, seria um desvio, uma desculpa patética, um engano supressor dos desenganos maiores nunca a tempo declarados, um vício juvenil posto ao dispor do imaginário através de toda a vida.
Toda a vida, a partir do momento em que a descobriu, ele lhe acompanhou os passos à distância, temendo-lhe a reacção ao verificar-se objecto daquela perseguição contínua, irracional, talvez doentia. E de longe, quedo e manso, a viu casar-se com outro mais afortunado. E viu-a ter filhos e criá-los, vesti-los e calçá-los, até que se formaram, se casaram e se aventuraram horizonte além. Viu-a ficar de novo a sós com o marido, mais felizes por se sentirem cientes do dever cumprido e ainda ser possível a reinvenção do amor. E pôde vê-la, enfim, enviuvar, aquando dos destrambelhos da caça, num suspeito incidente entre espingardas e mato, que lhe roubou, a ela, sua amada, o ainda viçoso companheiro de e para tantas e tão promissoras jornadas de paixão sem rédeas.
Só não a veria casar-se outra vez e outra vez fingir o amor de trepar paredes até ao telhado, ainda que com as têmporas já um tanto embranquecidas, porque veio a ser condenado por homicídio qualificado à pena máxima e morreu na prisão.

domingo, 14 de janeiro de 2007

RESMUNGO AO CREPÚSCULO MATINAL DE MAIS UM DOMINGO SEM MISSA

Acendeu um cigarro. E se fosse o último? E se este só fosse o derradeiro desejo concedido a um condenado antes de subir ao patíbulo? Apenas um cigarro – sussurraria ao carrasco, ao baixar a cabeça para que a corda tomasse o seu lugar à mesa e a função de acabar começasse. O tabaco corrói e mata. Está mais que provado, comprovado e propagangandeado por aí, em parangonas só comparáveis em histeria àquelas com que os mentores da guerra se mentem, mentindo a outrem, para justificar a metralha. No caso em causa, o do cigarro, algoz e vítima a executar confundir-se-ão numa única silhueta, com a morte prometida a ambos ao mesmo tempo.
Este vício ancestral de viver de noite, deixando à luz do dia a reposição do equilíbrio anímico, e físico, através das horas de sono o mais possível (nunca de mais), incentiva a semeadura de outros vícios solitários, como seja este, por mais próximo exemplo, de escrever– espécie de masturbação sem orgasmo inteligível, porque sempre insatisfeita, mas que dá um prazer infinito enquanto dura e até ajuda as obras de restauro ou de replantação das ideias. Ou este outro, o de fumar horas a fio, como se com o fumo se levitasse por cima dos passos de mais penosa investida. Ou esse de deambular a esmo, optando por ruas nunca antes pigarreadas, becos de negridão a agarrar-se aos pés, gavetos sem nome nem enredo histórico que mereça anais. Ou ainda o de espreitar a face oculta da vida pela lente de qualquer fundo de copo sorvido até ao último esgar.
Afinal, não durou muito o cigarro. Agora, derramada a ânsia para a cave de desperdícios sem préstimo antes e depois, jaz espalmado no pó sob o sapato, prevenindo o reacendimento noutras bocas, noutros matagais, noutros infernos de lume a consumir a metro.
Ao pó o que do pó nasceu, com excepção do fumo que lá vai, nuvens acima, direitinho ao céu. A não ser que chova.

domingo, 7 de janeiro de 2007

DA SÉTIMA ARTE À PRIMEIRA DAS QUE HOUVE ENTRE TERRA E CÉU

É assim uma súbita sensação de apreensão e de gelo mortal o que se experimenta, como se todos os sóis do espaço cósmico ousassem entrar em fase de eclipse de uma só vez, quando as luzes da sala começam a baixar de intensidade, se reduzem a corpúsculos ao rubro e em estertor se misturam na escuridão total. Breves segundos depois, sempre longos de mais, o jorro do projector trespassa o breu e a sessão principia.
Um filme vulgar, sem ambições de ter mais assistência que a que se vê: em toda a plateia, duas pessoas, apenas, sentadas lado a lado. No entanto, apesar da proximidade relativa, não se conhecem, não falam, nem segredam aquelas banalidades habituais num corpo-a-corpo espontâneo. Nem um revirado olhar, de vistoria e sondagem que fosse, teriam feito colidir e ser chama de isqueiro em noite ventosa.
Ele entrou primeiro, olhou em volta, não viu ninguém, ainda hesitou entre ficar ou não, e acabou por se sentar ali, mais ou menos no centro da sala. E ela, que só chegou um sopro mais tarde, também olhou em volta de modo lento, também rasou os cumes da hesitação, mas, porque só o viu a ele, optou pela cadeira a seguir. Nem o mais remordido dos sussurros, como cumprimento, se repartiram.
Com uma terça parte do filme já consumida, contudo, quem entrasse na sala não a veria em sítio nenhum. Onde é que ela estaria escondida? Teria desistido do massacre em celulóide e abalado em busca de ar? Alguma indisposição a obrigara a renunciar à mudez da fita decorrente aquém da tela?
Só o repentino orgasmo, nele, denunciado pela incontinência daquele urro de inconfundível escala cromática a morrer em tosse, a fez aparecer de novo à tona de água, de mãos e lenço assarapantados a encobrir boca e olhos, para num pincho se levantar e sair quase em corrida. Nem um tremor de aceno a fez olhar para trás a certificar-se de que ninguém, dentro ou fora do cinema, a perseguia.
Ele ainda lá ficou, a ver o resto do filme.

sábado, 6 de janeiro de 2007

ARRANJO DE FLORES APENAS COM UMA ROSA E CAMPESTRE

Um ano depois, e continua linda. Talvez o tempo corrija mais o olhar mensurador que o objecto mensurável, ensinando-o a ver pormenores a que nunca antes prestara, por obra e graça da sofreguidão, a justeza de uma homenagem resumida à sua verificação atempada. E quem sabe se o objecto, neste caso à vista, não terá agora cúpidos propósitos de demonstrar quão estúpida cegueira lhe teria desvanecido a imagem haverá um ano, mostrando-se por inteiro perante olhos liquefeitos, sem vergonha alguma de por eles se saber despida até ao mínimo pêlo a referida imagem na nudez da rua.
Também acontecerá, nesta idade, que cada dia acrescentado a quantos dias já lá estão, no lugar de deteriorar, engrandece, aperfeiçoa, sublima. E tudo o que nasce lindo, lindo há-de vir a corroer-se, com maiores ou menores retoques de restauro e de conservação, ao minimizar a crueza do efeito denominado por tempo de vida, esse mal-assombrado necrófago sem alma nem sindicato mas com as quotas em dia.
E como será daqui a uns dez, vinte, trinta anos? O transcurso existencial assemelha-se a uma curva parabólica, ascendente e descendente, em que o momento de atingir o apogeu será o mesmo que precipita a descida. E quanto mais depressa lá se chegar às cumeadas, mais depressa de lá se há-de tombar na estupefacção de cãs e rugas e artroses de mãos dadas. Assim será um dia, e nem muito distante, com certeza. Mas não por enquanto, isso não.
Ei-la, um ano depois. E como ela continua linda.