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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 12 de junho de 2008

DO FARO DE CÃO SER SENSÍVEL AO PERFUME DAS FLORES MORTAS

Uns, dizem que ele se atirou. Outros, que caiu por descuido. E outros, que foi empurrado. A ninguém a polícia prestaria atenção. Limitou-se a contornar no asfalto, a giz, a posição final do corpo caído, a furtá-lo aos curiosos e comentaristas com um panal de cotim cinzento, a tirar as medidas em relação à parede e ao eixo da via, e a delimitar todo o espaço de acção com a habitual fita de plástico de cores vivas. Muito mais vivas que o morto, pelo menos, disseram alguns.
Vencido o fastio das formalidades legais, sumiu-se o corpo no zelo da competente ambulância, sumiu-se esta sem chinfrim de sirenes e sem pressa a caminho da morgue hospitalar, e por lá se ficaram apenas o boneco esparramado no chão e a fita colorida, dissuasora do assalto pedonal à obra de arte, além de um ou outro bigode policial, de vigia por turnos, como é de uso em casos destes. Para grande felicidade de quantos agentes para lá se veriam destacados nas noites seguintes, a chuva, inteligente, far-se-ia ouvir sem réplica, devolvendo o pó de giz à poeira da rua e desautorizando a fita, cuja coloração logo esmaeceu de vergonha. E tudo voltou à normalidade dos dias comuns por sábia interposição da chuva, garante de quanto importe lavar sem recurso à sofisticação de sabonárias e afins.
Os jornais fariam eco do evento, mas nada adiantaram no respeitante à identidade e às origens do protagonista. E também ninguém saberia explicar muito bem a razão de ser das flores, aparecidas sobre o local onde antes se via o desenho. Talvez ali as fosse depor, com remorsos, quem entretanto se presumisse como o indesvendável motivo para a consumação do suicídio, ou quem não soubera encaminhar os passos operários sobre as telhas a consertar, ou quem de lá de cima lhes dera ajuda e fizera desafiar o abismo.
Foi através das flores, no entanto, que a polícia solucionou o enigma e dele fez lavrar o respectivo auto de notícia.