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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 30 de maio de 2008

DE COMO EM ESGRIMA SEM MÁSCARA É ÚTIL O TRUQUE DO PASSO ATRÁS

Observou, das mãos, a palma e as costas. Conferiu as unhas, uma por uma, esticando com força e num único gesto os dedos todos. Como a crista dos garnisés, quando alçada. E outra vez na palma, analisou as valetas lineares da adivinhação cigana, sem nada ler nelas. No anelar da esquerda, ainda o vinco insuficiente de uma aliança de ouro, que o tempo fez fundir e sumir-se no areal. Estão velhas, as mãos. E com as mãos, o resto. E as dela, como estarão? E o resto?
No desassossego da montra, a espicaçar-lhe os miolos e a fazê-la dar pulinhos de nervos a pedir freio, um vestido que, a vesti-la, lhe traria mais piropos que sem vestido nenhum em plena rua. Também já não tem vinte anos. Nem trinta. Mas ainda mexe, pois mexe. É só dar-lhe ensejo e campo de acção, que até os semáforos enrubescem o verde, e vice-versa, à passagem dela deles perto, a pé ou de carro. A causa dos nervos a pular, neste caso, é o preço, remoto, meio disfarçado entre a tessitura das pregas, o declinar dos folhos, o arrojo da transparência, os alvitres libertários de tanta leveza. Estão verdes, as uvas. E com as uvas, o resto. E as dele, como estarão? E o resto?
O telefone é uma praga. Leva e traz notícia de quem esteja e de quem vá. Tanto aproxima como separa. Tanto constrói como destrói, e logo reconstrói e desmorona. E logo acaba e reconverte o que seja fatídico não ir adiante da própria sombra com o sol a cair de frente. Não se te apagou o número da memória compradeira quando te foste de cá, em boa ou má hora, não interessa já, já não dói. Que muito gostarias que eu visse uma coisa —, me disseste tu, em voz de oferta consonante ao peso em contrapartida. E a pagasse —, disse eu, em resposta, sem me escutar um sopro. E aí vou eu ver a coisa, pronto, de mãos nos bolsos da lembrança para efeito de comparação e desculpa, a usar à mínima emulsão de nostalgia em retroacção branqueadora.
Nem sempre sabemos o que queremos, creio eu, quando queremos o oposto às conveniências. Um antigo companheiro, contudo, está fora das contas a fazer, no tocante à conduta e seus princípios, porquanto nunca o sopesamos de igual maneira. Nem o tomamos como alguém cuja presença por perto, tolerada, cause mazelas, danação, incómodo ao fugaz toque visual. Dele evocamos sobretudo as reminiscências de quanto houve de sedutor, de aprazível, de repartido em seu cenáculo mais consentâneo noites e noites abaixo. E é por isso que, de quando em quando, fingimos esquecer quanto de mau comungámos e damos as mãos num presente que tempo antes não contou. Não é que ao ver este maravilhoso vestido na montra de imediato o imaginei a ser-me despido, numa aflição, por ti?
Observou, das mãos, a palma e as costas. Conferiu as unhas, uma por uma, esticando com força e num único gesto os dedos todos. Como a crista dos garnisés, quando alçada. E outra vez na palma, analisou as valetas lineares da adivinhação cigana, sem nada ler nelas. No anelar da esquerda, entretanto, o vinco anterior serve à medida para a nova aliança de ouro nele colocada. As mãos? Continuam velhas. E com as mãos, o resto. E as dela? Talvez não tanto, não. Nem o resto.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

NEM SEMPRE A BOA SEMENTE GARANTE BOA COLHEITA AO SEMEADOR

Um mendigo, tão elástico como fedorento, pula do breu na vertical e corta-lhe o ímpeto andante, rogando, só com a mímica universal dos dedos em tesoura à frente da boca, um cigarro. Traz névoa nos olhos, o vadio. Mas nem por isso lhe nega o objecto de rogo e a simpatia de lhe chegar o fósforo aceso em complemento. E, como se compreende, aproveita o esforço altruísta e dá-se lume a si mesmo, enquanto, num golpe certeiro do instinto àquela distância, consegue encestar o maço amarrotado numa sarjeta sem grade do lado oposto da rua. É aí que, como prémio, porque o júbilo dos ganhadores tanto exige, ou porque o estarreceu ter só dois cigarros aquando da abordagem mendicante, ele toma a enrugada decisão de deixar de fumar. E entra no primeiro bar que por azar descobre ainda aberto, já com o dinheiro contado na mão, para comprar um novo maço.
Sempre se soube existir um abismo enorme entre a vontade, que não apenas desejo, e a capacidade de pôr em prática os intentos tomados por norma de conveniência, por necessidade, por mera prevenção de acidentes na jornada de luta entre o berço e a cova. Os vinte cigarros, agora comprados, não se pretenderão marco ou brasão em relação ao vício a despir às claras? Ou seja, não deixando de correr riscos, algo a impor-se como lembrete, na algibeira, nas mãos, na súplica dos olhos ante quantas baforadas os fizerem arder? Não, nada disso. O truque é simples: virão a ser oferecidos com lume e tudo, um por um, a outros tantos mendigos que do breu saltem, como aquele de há pouco. É, ou almeja ser, uma terapia de choque, com algum sofrimento e o perigo de sufoco a qualquer instante. Mas valerá a pena.
Uma avenida há muito anoitecida, em zona portuária, exposta a tudo o que se considere um nico além do nefando e onde até o ar respirado será podre, pode ser um bom campo de manobra. Mendigos, uns sob a égide do desemprego acomodado a sem esperanças nem procura, e outros por opção agrilhoada a não certezas, há por aí muitos. Preciso é ter paciência e esperar que ataquem, que se descosam da treva, que venham ao cheiro e se rendam à premência de um cigarro sem custo, caído do céu, com lume e tudo. O fumo inebria, o sabor conforta, e os pulmões, qual ilhéu avesso às rotas, decerto saberão perdoar a quem os castigue e neles desafie a própria vulnerabilidade.
“Já não fumo, muito obrigado”—, diz-lhe um, o primeiro, que nem do cartão se levantou, atafulhado em trapos e jornais sem data.
“Não fumas tu, fumo eu”—, responde quem toma por provocatório o desaforo da recusa e de imediato se afasta, a passos de metro e meio, envolto numa nuvem mista de vapor de água e fumaça.
“Far-me-iam maior arranjo umas moedas, ou uma nota”—, diz-lhe o segundo, sentado em posição ióguica e exibindo a correcta dicção de intelectual desencantado, algumas esquinas e respectivos semáforos mais adiante. Ao lado do vagabundo, a encimar meia dúzia de livros, junto à parede, dormitam um coto de vela e um par de cangalhas, de arame, com uma das lentes quebrada e a outra em falta.
“Também não queres? Quero eu”—, remorde agora, à luz de mais um fósforo riscado pelas mãos em concha, o piedoso, a tombar em queda livre e a submergir no lodaçal da frustração. E depois ainda por aí há quem diga que é fácil fugir a um vício, desde que outros valores mais alto se alevantem.
Chegado ao fim da avenida, em plena doca, só lhe resta o cigarro que ora se lhe adivinha colado aos beiços. Eram vinte, nos primórdios da jornada filantrópica até ao mar, e vinte foram as tentativas de alijar a carga infame em prol do bem. Ninguém dele soube merecer tamanho apego, tão desinteressada atitude, tal pundonor.
No regresso, avenida acima, comprou outro maço de cigarros e jurou que nem um daria a quem quer que fosse, mendigo ou não.