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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

ERAM TRÊS HÁ OITO DIAS E AGORA SÃO JÁ DOIS EM FALTA

O súbito bramido que se faz ouvir em tudo lembra o de uma avalancha a despejar metade da montanha no sopé. Mas não é montanha nenhuma a desfazer-se em queda livre desde os píncaros: é o comboio, ainda agora acabado de sair do túnel, a passo lento sobre a ponte. Ponte antiga, a requerer descanso e sopas, com arco de volta inteira e toda ela de ferro tão antigo como ela, apenas exceptuando as chulipas e o justo temor de que num dia destes, sem aviso de véspera, apresente contas à inépcia envernizada do respectivo ministério, nos antípodas, ou seja de quem sobre esta ponte nunca teria circulado entre abanões e vertigens. E daí o fragor de derrocada que, mesmo assim, nem todos escutarão de igual maneira.
O rio vem gordo e sujo, tendo-lhe valido as últimas chuvadas e a promessa fácil de que mais virão. Entretanto, como é dito nos repertórios cuja longevidade é certificado, o frio também se fará entremear com a chuva, impondo a geada e os nevões como capa de viagem a lugar algum. Porque o céu limpo, sem sequer um farrapo de algodão a esfiapar-se, tão nitidamente azul como se mal tivesse saído da oficina da criação (segundo a bíblica hipótese), não significará bonomia e temperança entre os elementos componentes desta parcela do penedo redondo que pelos espaços gravita em torno de outrem.
Ao longo da vereda que na margem acompanha a torrente, lá longe, surgem dois vultos disfarçados pela distância. E crê-se que nem os traz grande pressa, se tanto demoram a iluminar a incógnita de quem são. São só dois velhos. Talvez operários quando em tempo moço e agora já na rampa descendente da aposentação. E se um deles é baixote e cabeludo, o parceiro é comprido e calvo que nem seixos perto da foz. Ambos coxos, por obra de moinhas diferentes, o mais espigado arrasta o pé gotoso e equilibra-se num improviso de bengala, enquanto o outro, com a mão a carregar na cinta, maldiz entre os dentes, a cada passo, a contínua corrosão do fémur direito.
Voltam as costas ao rio e trepam o carreiro que os conduzirá até à linha férrea, no extremo de cá da ponte, já que o oposto quase é coincidente com a bocarra do túnel. Aliás, foi mesmo ali, naquele ponto, que um amigo comum, oito dias antes, se decidira pelo abandono da corrida.
“E ele nem coxeava como nós”–, comenta o velho da mão na cinta, amarrado pela voz remordente, passo a passo, à utopia de atenuar o desgaste do fémur direito, enquanto o mais alto e calvo, de bengala improvisada, arrasta a gota atrás dele.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

DE COMO UM CISCO NUM OLHO NUNCA SERVE DE SUPORTE À MÓ DO TEMPO

Se este vento falasse, falaria castelhano. É dessas bandas que vem. E o que venha de tais bandas–, lá diz o rifão e a História confirma sobre exemplos mil–, não presta. Nem ventos nem casamentos. Além deste frio de rachar pedra e do frenesim a desgrenhar tudo (ervas, arvoredo, cãs, ideias), também há-de trazer no encalço a brusquidão das chuvadas temporãs, com a possível complementação de enxurradas, devastação e morte em conformidade. Por enquanto, porém, apenas se dão a ver e a ouvir ameaças nos redemoinhos de poeira, no rodopio das folhas, no silêncio enroscado dos pássaros algures.
Deveria ter trazido uma gabardina, um chapéu, um cachecol, um par de luvas. Mas não trouxe. Portanto, nada a fazer com a consciência daquilo de que não pode dispor no momento, a não ser aguentar a intempérie e fingir que nada lhe falta, que tudo decorre segundo as expectativas, tudo se desenvolve no sentido da efectivação de um projecto guardado desde o caos original, que o mesmo significará desde nascença ou um quase nada adiante desse primário tombo no planeta.
Há quantos anos, de facto, se lhe aferroara aquela paixão por uns olhos cor de água, esmeraldinos e cientes disso, e como é de regra traidores ao mínimo reflexo em outrem? Quantas as noites de estrelas contadas através do tecto, sem um bocejo a minorar o temor, a ânsia, a incerteza, e a ruindade de sonhar mais desperto que um morto contra a vontade antes do pulo no escuro? E em quantas manhãs sonhou ele já não acordar, mas ficar para sempre nessa espécie de fluído amniótico que envolve o subconsciente antes do parto na luz?
Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades– de acordo com o prescrito pelo Poeta–, e os olhos cor de água cederam o passo à torrente, perderam altivez e ganharam sentimento, tombando das nuvens e como regato tranquilo se mostrando entre margens previsíveis.
Viuvez não quer dizer condescendência, liberalidade, falta de tento ou de aprumo, desiquilíbrio, vazio. No entanto, e porque o viço se vale de manhas e máscaras onde as carências sejam de lógico alvitre, há sempre quem tente o assédio a muralhas abandonadas à sorte, passíveis de soçobrar ao menor sopro a favor do trambolhão no charco.
E se a água daqueles olhos, perante o espelho matinal, ainda os levou a ver-se com a mesma liquidez de há trinta ou mais anos, tornando a dependurá-los nas nuvens e a pretendê-los imunes à rarefacção atmosférica, por exemplo, ou às vertigens garantidas pela sucção da gravidade, ou a esse embaciamento gradual de que espelho algum negará a evidência?
Cumprir-lhe-á tão-só mudar de lentes.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

ONDE E QUANDO O PRECONCEITO VALE TANTO QUE ATÉ MATA

Como traineira que chegada à barra não consegue entrar por malevolência da borrasca, assim ele hesita e gagueja quando à frente dela se vê, de mãos apatetadas nos bolsos e olhos de gatas no chão, ao pé dos pés e da sombra.
A denúncia em tom escarlate das faces, a demasia de saliva à flor das palavras por dizer, a comichão capilar a pedir escova de arame, e o terramoto interior sob escala mensurável em si mesmo a olho nu, tudo aparece ao de cima, como sendo obra de ocasional recorrência, quando o ensejo é bastardo e o põe à mercê daquele riso a bambolear malvadez, daqueles tiques de mordedura envenenada por prémio, daquele ar de vitória sem qualquer luta aprazada em campo neutro.
De cada vez que ele a percebia à distância, e tantas eram que nem eram coincidência, jurava para dentro nada lhe dizer ao passar por ela. Não a olhar sequer. Fingir ignorá-la. Como se de todo a desconhecesse, nunca a tivesse visto. Contudo, mal a lonjura se encurtasse até ao pânico do rubor embandeirado nas maçãs do rosto, logo os balbucios e a aflição dos olhos se tornavam coro misto a várias vozes, com o baixo contínuo de algum naipe incorpóreo de violoncelos a fazer troça. E ela ria, pois ria, melómana atenta a tão óbvio falsete posto em pauta e dado a ouvir por um só solista.
Proclamam os livros que ódio e amor são irmãos gémeos, de tão parecidos como próximos na decantação. E ele, por força de tanto a amar, chega a odiá-la. E tanto invectiva o acaso de a encontrar no caminho, como se congratula ao tê-la adiante dos passos que a seguir decalcará, gago e trôpego mas crente de que ainda a terá, um dia, à sua espera, tal e qual como ele, arvorando alheamento, hoje a espera a ela.
E se a lotaria o bafejasse? E se uma súbita rajada de sorte lhe impusesse asas nos pés e o empoleirasse nas nuvens? E se ao olhá-la não a olhasse como quem suplica atenção, mas como quem a distribui a quem atenção lhe mereça? Benemerente e magnânimo na hora da fortuna, decerto lhe perdoaria tantos sorrisos escarninhos, tantos olhares viscosos em provocação, tanta indiferença no atinente à paixão por ela que ela saberia a agrilhoá-lo desde a nascença.
Foi a ela, todavia, que uma nunca sonhada herança bafejou, libertando-a de quantas amarras costumam prender ao cais da miséria quem nessas águas navegue. E zarpou para longe, como se adivinharia, mal pôde dispor do pecúlio e respectivo caudal de benfeitorias a usufruir. E mal se livrou da suspeita de homicídio, que quase como consequência a enredou e aos usuais desconchavos da investigação policial a fez sujeitar.
Grande azar foi, na realidade, que lhe tivesse dado uma coisa, a ele, quando ela, com um sorriso de maviosa frescura, se lhe apresentou em casa dos pais a pedi-lo em casamento.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

PORQUE OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS QUER À SOMBRA QUER AO LUAR

Todo aquele sarro agarrado à pele, apesar do cheiro palpável à distância, sempre o protege do frio. Para quê lavar-se? Não será bem melhor a sujeira acumulada, que tiritar à ordem do relento nocturno, ao vento e à chuva? E se o aroma engelhar o nariz de alguém, que se desvie ou afaste quem próximo de mais se encontre do sítio onde nem deveria estar.
Achou, por grande fortuna sua, dois belos caixotes de cartão canelado, que, uma vez desmanchados, proporcionarão uma cama como há muito não se lembra. O pior é se algum traste vadio, desses que por aí tanto abundam, lhe rouba o direito a dormir sossegado, e com o merecido conforto, por mercê dos dois cartões transformados em colchão.
Quanto ao local escolhido―ou possível, de acordo com o jogo sem regras de procura e oferta―, este recanto, por debaixo do viaduto, sempre se lhe afigurou barulhento em demasia para quem tenha o sono leve como ele, qual cata-vento às mãos de qualquer mínima aragem, qualquer traque de formiga. Ainda deambulou pelas margens do rio, a espiolhar os contrafortes da ponte, vigas sobre vigas gigantescas de betão maciço. Mas outros, muitos outros, antes dele por lá deambularam e lá se instalaram e ajeitaram em função do espaço, nenhum espaço sobrando para mais ninguém.
E se matasse um polícia? E se matasse um político? Ganharia cama, comida e roupa lavada para o resto da vida, que já não será longa, poupando-se a esta diária peregrinação em busca de um bueiro exclusivo onde se enroscar com segurança, sem mosquitos nem demais vagabundos a picar-lhe o tino.
Convirá que seja um político importante, no poder, deputado ou governante, com a imagem corroída por excesso de tempo nos plainos da face oculta da Lua a apascentar-se. E eis como se tornará viável transmutar em facto heróico uma atitude de pura sobrevivência. Metade do país, pelo menos, louvá-lo-á e erigir-lhe-á uma estátua equestre na memória.
“Sabes de alguém por aí que me arranje uma pistola?”

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

DO MAU FEITIO DE CUSPIR NO CHÃO À TOLEIMA DE O FAZER NA PRAIA

Por enquanto, a mesa do café é uma praia remota: tem tanto de nostálgico como de incógnito. Não há maresia no ar. Nem barcos de borco areal acima. Nem sequer um roteiro unívoco de pegadas ziguezagueantes conforme o rendilhado terminal das ondas. E nem mesmo a sujeira de algas velhas e alcatrão e conchas que importe nunca pisar, isso não, ou a incógnita só perdurará até ao primeiro escarro de repulsa e ao exagero de arremessar os chinelos, pendurados na mão, contra a lonjura de um horizonte sem culpa de não ter ouvidos.
Quando o funcionário, sinuoso e reverente, aqui implantar o odor vaporoso das chávenas, a praia nunca mais será remota como antes. E nunca mais incutirá nostalgia no imaginário de quem nela se estenda a aspirar a tarde, a entretecer enredos no entretenimento de repisar pegadas de outrem, a devassar a vastidão de horizontes contra a lonjura de uma inspiração já tardia em fazer-se ouvir.
“Não ponho açúcar no café há já vinte e cinco anos”–, diz uma voz para outra que até agora nada disse.
Alguns mastros a ver-se para lá das dunas, como se em terra navegassem, quererão dizer a quem venha praia adiante que ali há estaleiros moribundos, heróicos na resistência à queda em seco, símbolo último do naufrágio sempre anunciado por excesso de peso em âncoras.
Não se descure, porém, o pormenor de que tudo isto se passa sobre a mesa do café onde se sentam duas vozes, sendo que a uma delas só a moleza bocejante, até ao momento, teve artes de se lhe escapar em esgar espreguiçado e lágrimas. O perigo maior, portanto, não é o de não saber nadar quem ao leme se empertigue contra as vagas, com ou sem açúcar desde há um quarto de século, mas somente o de se não dispensar o gesto de dar corda ao relógio do tempo com a colherinha, como se com ela se adoçasse este desengano da vida.
Torna a ser praia remota, de repente, a mesa do café, quando um bando de gaivotas passa lá por cima, ante a aproximação vespertina das traineiras, talvez carregadas de pão…
“Acertou-me mesmo na chávena, aquela puta!”