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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 30 de abril de 2010

ONDE O VÍCIO DE TER VÍCIOS SE DESCULPA E SEGUE ADIANTE DA SOMBRA

Deitou açúcar no café, meio pacote, e rodou a colher na chávena, em sentido retrógrado, tantas vezes quantos os anos que fazia hoje: trinta e nove. Para da oportuna dissolução do adoçante, de pouco ou nada lhe valeria — sempre de tal tivera consciência — rodar a colher contra a marcha dos ponteiros ou a favor. Fosse assim tão simples obstruir a arquitectura de rugas por fora e por dentro, e não sobraria sequer um grão de açúcar no mundo ao dispor dos afinal infiéis amantes do café despertador, retemperador, motriz. Porque os bons consumidores do elixir tropical não carecem da sobrecarga de veneno granulado. Nem em tempo algum se verão compelidos a enveredar por um sentido ou por outro na rotação da colher, seja qual for o grau de abstracção sob demanda no labirinto circunvagante da chávena. E trinta e nove anos nada serão ainda, quando comparados à condenação de quem já role sobre o dobro, ou mais uns tantos, e assim contabilize os dias um por e ao invés, por subtracção sem necessidade de prova. Haverá sempre quem se sinta muito pior que nós, ame ou não ame o refúgio pontual do café, com veneno ou sem.
Entretanto, também há notícias que envenenam, e com que afinco na picada sobre a carne tenra da crença, e aquela, ainda o sol ressonaria, impunha-se-lhe tão acutilante como se lhe afiançassem que a mulher o andava a enganar com o seu melhor amigo. Mas ele não era casado, amancebado, ou sequer carenciado de descargas ajustadas de quando em quando ao melhor preço. E de amigos, nem a poeira de quaisquer memórias disso lhe faria arder os olhos. Nunca fizera amigos ou com tamanha temeridade algum dia ele se preocupara de mais. O efeito da notícia, pois, apesar do carrego de maus desígnios na sua sublimação de remate, antecessora do escarro, veio a ser menos que nulo. Aliás, o dar ouvidos a aleivosias provenientes não se sabe de onde, se apenas votadas a desmantelar equilíbrios e a reduzir a pó atitudes da mais sã verticalidade por insígnia, será quase tão criminoso como produzi-las e fixar-lhes asas no lombo para que voem e cumpram o que à partida lhes cumpra: derrubar, destruir, varrer, soterrar. E apurar o propósito e a paternidade das infâmias transportadas pelas ventanias, mais que quimérico, é escusado: uma vez posto o ovo, nada há que o impeça de parir e de se multiplicar orelhas avante como toda a praga, ainda que de vida curta. O tempo tudo cauteriza.
O mais atilado há-de ser isto: tomar um café, sem açúcar, nem sequer a transigência de meio pacote, e fazer do amargor saboreado a doçura das ideias enfim aclaradas, libertas, orientadas segundo a bússola das desde sempre consideradas como rumo e prémio em vista.
Quanto ao mísero percalço dos trinta e nove anos acumulados, para o ano que aí está posto à espreita será pior: serão quarenta, o começo do fim, que o mesmo é dizer da queda no vácuo da imponderabilidade nos passos. O resto, queira-se ou não, não é mais que treta.