http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg

eliseu vicente

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 28 de junho de 2006

DAS LUZES E DAS SOMBRAS (TÉTRICAS) DA RIBALTA

Viu-se no espelho da montra, e não se achou nada mal. Há pequenos pormenores que por vezes nos escapam em casa, na hora de dar por acabado o conserto fisionómico a que todos os dias nos submetemos, antes que a rua nos reduza a dois pés andantes e se borrife no aspecto mostrado por cada um diante de cada qual ou de todos. E é de ter em atenção que o vidro das montras só é espelho, se outro mais fiel não estiver à mão. Talvez por isso costume ser tão generoso.
Hoje é um dia especial, entenda-se. Não haveria espelhos capazes de lhe enrugar as expectativas, de lhe ensombrar o brilho. E alguns fios brancos nas têmporas nunca foram drama que justificasse particular encenação. A benevolência falará mais forte, por encandeamento dos projectores oculares em recíproco, e aceitará o cheque possível que o tabelião temporal caucionou. Haverá que perceber de parte a parte, sem poesia mistificante, que na realidade já lá vão muitos anos.
Não lhe será difícil reconhecê-la. Há traços, indeléveis, que desde os primórdios da infância nos identificam. E esta rua, por esta hora, nem tem assim tanta gente. Muito triste seria que ela aparecesse, e se lhe dirigisse, e ele a não recebesse de braços abertos e com o mais jovial e espontâneo dos sorrisos de que haja registo nos anais da cidade.
Ora ali vem ela, sem dúvida. E que linda continua, a magana. Aquele eterno riso nos olhos, aquele mesmo trejeito meio trocista nos lábios entreabertos, aquele mesmo ondular macio de pantera antes do salto. É ela toda, inteirinha, ao lado desta velha de bengala…
"Se me dás licença, deixa que comece por te apresentar a minha neta".

terça-feira, 27 de junho de 2006

O CONSELHO AMIGO, O SEMÁFORO E A DROGARIA

O carro, não só não respeitou o vermelho, como acelerou e avançou por cima do passeio, e só se quedou ao embater em cheio na montra da drogaria. Ao volante, um velho de oitenta e tal anos, cujo coração, esse sim, terá travado a tempo e parado a marcha quando o maldito sinal vermelho se lhe atravessou no percurso.
Ninguém mais se feriu com o embate. A sorte também por ali estaria com quem por lá estivesse a espreitar a montra, ou a espreitar quem a espreitasse, ou a deitar mão aos derradeiros afagos do sol num dia murcho, enevoado, insípido. Bom para não se sair de casa, dir-nos-ia o velho, que nunca mais dirá seja o que for a quem quer que seja.
Aquando da última consulta de rotina, embora satisfeito com tudo o que nele pudera observar, o médico recomendara ao cliente e amigo o abandono do volante e do tabaco. Quanto ao tabaco, sim senhor, já lá ia, foi logo no dia seguinte. No relativo ao volante, foi hoje.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

O SECRETO GOZO DO SENHOR HILLMAN IMP EM IR À PRAIA DE NOITE

Ele, um puto, na tropa, vinte e dois anos, sem estreia, ou quase. Ela, não puta, professora primária, uns trinta e cinco a correr mundo mas solteira, já sabedora e com alguma experiência nessas coisas de que a noite é guardiã sem garantias de total privacidade. O carro, dela, um minúsculo Hillman Imp, de cor branca, que nem leito de noivado sob pertinente vigilância maternal até ao grito do selo. O local escolhido, ou o possível na altura―tendo em conta o fogo, nele, a combater com quantas agulhetas viessem―, um descampado marginal entre pinhal e praia, antes das dunas, talvez distante da civilização mais próxima de tal ermo e não de todo encurralado pelo mar.
Conheceram-se num bailarico daqueles de que muito pouco resta na lembrança colectiva. E no meio de dois passes na poeira do terreiro, entre velhas de negro e bêbedos ao rubro praguejando entre si, lá se encadearam diante da urgência, comum, em sair de lá bem depressa, antes que o rubor dos bêbados e o negrume das velhas desatassem à pancada para descarrego do tédio.
E o resto da história, como se calculará, é o trivial nestes lances onde pontua quem sabe e disfarça o deslumbramento quem pouco ou nada saberia, afinal, nesses lances onde disfarça quem se atrapalha com o próprio acanhamento e há-de pontuar quem é sabedor e tem alguma experiência nas tais coisas de que a noite é guardiã sem garantias de total privacidade.
Um pormenor a rematar: por sorte do amplexo em gestão, era Março e começou a cair uma chuvada daquelas em que até os cães, como se costuma dizer, bebem a chuva de pé. Só de manhã se aperceberam de que o carro―o robusto Hillman Imp, não tão minúsculo como foi dito aí atrás―estava enterrado num lamaçal até aos joelhos de quem dele pretendesse sair. Ponderando os prós e os contras, ninguém dele saiu durante dois dias a eito, os necessários e suficientes para que o carro se afundasse por completo na lama. Nunca mais foi encontrado.

domingo, 25 de junho de 2006

MANDA O CÓDIGO QUE SE CAMINHE PELA ESQUERDA

Quando voltou ao carro, vindo do pinhal à beira da estrada, o motor não quis pegar. Fechou-o e não se ateve com hesitações: prosseguiu a viagem a pé, caminhando pela berma. Cem quilómetros adiante, por instinto, levou a mão ao bolso e confirmou o que temia: tinha deixado no carro as chaves de casa. Assim sendo, que remédio, senão inverter a marcha e repetir os cem quilómetros, agora pela outra berma, por mercê do prescrito no código.
Ao chegar ao local, à entrada do pinhal onde estivera, não viu lá nada que lhe lembrasse um carro. Mas viu as chaves na areia. Fosse quem fosse o ladrão, sempre tivera o bom senso de não lhe levar as chaves e o deixar na rua, sem cama onde dormir. Ainda havia gente boa.
Cerca de trezentos quilómetros mais tarde, sempre bem encostado à berma e respeitando o código em absoluto, lá chegou a casa. Entrou e deixou-se tombar sobre o primeiro sofá que encontrou, depois de se descalçar e de deslaçar a forca da gravata, adormecendo de imediato.
Vinha ele tão derreado, que nem viu o carro estacionado ali mesmo à porta de casa.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

PERLENGA DO MUDO AO MOUCO EM MARCHA À RÉ

Devagarinho, sem ruído, como quem mete a chave na fechadura ao voltar para casa com o sol já destapado, assim também o acto de dar voz a um discurso de que nem um monossílabo nos escutemos. Não é líquido que um copo de tinto venha ajudar muito nos casos em que o bloqueio criador resulte do excesso e não da falta de matéria-prima à vista. Perdoe-se-lhe porém o bem que não faz pelo bem que sabe. E afinal sempre ajuda em qualquer coisa. Corta o pensamento em duas partes distintas: até ao copo e depois dele.

Como vês, já começaste. Bom será que não abuses, todavia. Nem todo o vinho do mundo será suficiente para que nele afogues esse bloqueio de que te queixas. O melhor mesmo é ter ideias, ir roubar lembranças às teias do sótão, restaurar ao reescrever toda a tua história pessoal, segundo directrizes propostas à mercê da inventiva. E sem pudor de proveta. Que sensaboria não se dirá da vida que não seja a reinvenção permanente daquilo que nem se tenha vivido ou sequer beliscado?

“Tu sabes a que horas chegaste a casa?―pergunta alguém a alguém de olhos em riste, como se tais olhos não estivessem fartos de saber qual a resposta.“Já passava das oito”―, completam agora, diante do silêncio de cadáver decapitado que lhes é dado ouvir.
“Devia ser isso”―, reconhece o cadáver, sem ponto onde ter os olhos, que também não apetece nada ter num momento destes.


Ora aí está. Lá te safaste. Conseguiste levar a cabo esta tua quotidiana missão de não deixar de impôr no papel―como se te abaixasses sob a fisiológica protecção do autoclismo―um pequeno lapso de nada, uma impessoal nota de viagem a nenhum lado, uma imprevista pegada no charco onde pensarás caminhar sobre as águas, como o outro, aquele que terá acabado na cruz a beber vinagre. Vai um copo?

segunda-feira, 19 de junho de 2006

LÁ NO OUTRO LADO DAQUELE MONTE

Dar-lhe uma flor. Ora aqui está uma ideia simpática: dar-lhe uma flor. Quantos anos se passaram sem que ele tivesse a atenção de lhe levar uma flor? As flores são femininas, por excelência. Até os cravos, seja qual for a cor deles. Ou os gladíolos, os crisântemos, os girassóis. São femininas, porque são ardentes, perfumosas, melindrosas ao mínimo toque, sensuais. E as flores com flores e entre flores se querem. Uma florista, precisa-se, com urgência. Dão-se alvíssaras.
“Ela já não mora aqui”―, diz-lhe a vizinha de baixo, que o conhece há muito tempo e se entristece por isso. “Mora lá no outro lado daquele monte”―, diz-lhe ainda, com uma lagrimazita a querer saltar por ver e ouvir a flor, aos berros, na mão dele. “Ela havia de gostar muito que lhe levasse lá essa flor”―, insiste, já com o lenço denunciante na mão a fingir que limpa os óculos.
“Fique a senhora com ela. Também a merece”―, diz ele, de olhos nas janelas de cima, onde, pelo aspecto de degradação, já não deve morar ninguém há alguns anos, bastantes anos. E retira-se, assobiando uma qualquer melodia de desconhecida proveniência naquele meio.
“Todos os anos, neste dia, lhe traz uma flor”―, comenta a vizinha de baixo para outra vizinha de perto, que se aproxima a dar fé.
“E porque é que ele não lha vai pôr lá na campa?”― pergunta então a que se chegou, picada pela curiosidade com o analgésico à vista.
“Não sei”―, responde a primeira. “Talvez para continuar convencido de que ela ainda por cá está. Mas vou lá eu, amanhã. Todos os anos lá vou levar-lhe a flor. E com esta vão quarenta”.

sábado, 17 de junho de 2006

DO ESPECTRO DA MODA AO ALÉM MUITO BEM ENGRAVATADO

Um senhor de cinzento entrou numa loja de artigos azuis e comprou uma gravata. E quando em casa entendeu por bem experimentá-la, a mulher, de traje roxo, disse-lhe que não, não estava bem. Seria contra a moral e os bons costumes pôr uma gravata que não fosse cinzenta. O senhor de cinzento saiu de casa e foi devolver a gravata azul.
Quando entrou numa loja de artigos cinzentos, viu lá um indivíduo de pele acastanhada e de castanho vestido. E deu conta também de que ele já tinha arrebatado a última gravata cinzenta que haveria na loja. E lá foi para casa com as mãos a abanar. A mulher, agora trajando de carmim, lembra-lhe que há mais lojas cinzentas na cidade. Ou então, que vista roupa de cor diferente, o verde ou o branco, e vá comprar a correspondente gravata a uma loja branca ou verde, é bem de ver. O senhor de cinzento despiu-se e virou-se para um branco-pérola, com chapéu e tudo. Só faltava a gravata.
Na loja dos artigos em branco, tornou a encontrar o sujeito castanho, agora de cinzento. E tornou a vê-lo comprar a última gravata branca de pérola que estaria lá. Irritado, regressou a casa e contou à mulher. E esta, com os olhos no espelho ao provar roupa amarela, sugere-lhe que se ponha de azul e vá comprar, outra vez, a gravata de tal cor. O senhor de cinzento, que depois virou para branco-pérola de chapéu e tudo, seguiu à risca a sugestão da mulher e saiu todo azul lá de casa, sem gravata nem chapéu.
Mas, logo à entrada da loja, cruzou-se com o homem castanho, depois cinzento, e que agora seguia de azul, dos sapatos à gravata. Que nem há dois minutos se vendera a última, lamenta-se-lhe o dono, com uma muito respeitosa e solícita vénia. Em desespero, saiu da loja a chorar, a caminho de casa. E vinha tão fora de si, que foi atropelado e morreu poucos dias depois.
A mulher, vestindo de negro da cabeça aos pés, foi falar com o senhor da agência funerária, aquele mesmo sujeito de pele acastanhada, hoje enfarpelado em verde-azeitona, mas sem gravata. E deu-lhe notícia, a chorosa viúva, de quais as derradeiras palavras do defunto, para que se respeitasse na íntegra o seu desejo acerca de como queria saber-se vestido no caixão. E tudo como ele dissera se respeitou: foi enterrado todo nu, com excepção da gravata em tom de verde-azeitona, a única que ele sabia existir em toda a cidade e que era dele, só dele. Toma.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

CASA ROUBADA, TRANCA NO BICHO

O cão pressentiu algo, ou alguém, por detrás das sebes, junto ao muro que ao fundo delimita o jardim. Mas não ladrou. Preferiu estender-se ao comprido no chão, o focinho pousado entre as patas dianteiras, a espreitar ao nível da relva o que de lá pudesse aparecer. E que horas seriam? Uma ou duas da manhã, não mais. Fosse quem fosse, se fosse gente, já saberia que ele estava ali. Nunca foi segredo. E nem tentaria aproximar-se. É que não teria sequer oportunidade de se arrepender. Bastante esquisito foi, portanto, que ao romper do dia se descobrisse que a casa fora assaltada, durante a noite, e esvaziada de tudo o que nela haveria, de bom e de reles. Até as próprias camas e quem nelas se deitava, sem que o cão tivesse dado o alerta. E ali estava ele, como sempre esteve, estendido ao comprido, no chão, junto da casota.
Só que estava morto.
Mas como é que pôde morrer o que jamais viveu? Este cão nem era mais que uma escultura de pedra, que o dono―um judeu―comprara há alguns anos numa feira de velharias, daquelas de rua, pretendendo com ela aforrar os cobres da ração para o bicho.
Apesar de judeu, aproveitou a lição e mandou instalar um sofisticado alarme electrónico. E depois vendeu a casa e ficou só com o cão.
Há quem diga, do cão, que ele nunca aprenderá a ladrar.

quarta-feira, 14 de junho de 2006

PAISAGEM COM PÓ DE PIMENTA NA BOCA PARA TEMPERO PONTUAL

Pegue-se numa árvore, pode ser um choupo, e plante-se aqui. Aqui, em linha com essa e choupo também, pode ficar outra. E aqui outra, outro choupo. E outra além e a seguir, sempre iguais. Um renque de choupos paralelo ao rio, com ninhos de cegonha como havia dantes, lá bem atirados para as alturas. Também paralelo ao rio e às árvores, ou emoldurado por estas e por indecorosos silveirões, um carreirito térreo, sem ambições de ir muito longe e de regressar com quaisquer notícias de alguém. E sombras no ar.
Com tudo isto sobre a esquerda, ficar-se-á apontado a poente. Só que entretanto é de noite. O sol já há muito abalou. E a única claridade é a das estrelas, num céu que aparenta ser pintado à mão, tão perfeito o esmalte, de uma ponta à outra. Sem a menor mancha provocada pelo pânico de que a tinta seque depressa de mais. E sombras a esmo.
Para a outra banda, ou embicando ao norte, disponham-se campos de milho sem limite à vista, onde aqui e além se percebam árvores. Mais choupos, e mais cegonhas e ninhos, ou talvez salgueiros. Espécimes dependentes da abundância de água nas cercanias, para que o nível freático os não deixe ficar mal. É que a bênção das cheias já secou há décadas, sem alternativa de reposição. E sombras em força.
Tendo o rio e as silvas e o carreirito e os primeiros choupos plantados à direita, ou de nariz orientado agora para nascente, poderá supôr-se uma estrada de alcatrão roubado que venha a terminar aqui. Também ela, a estrada, até este ponto, correu em paralelo à margem do rio, ao renque dos choupos por aí espetados para que mereçam ninhos lá em cima, à muralha das silvas e ao carreirito sem notícias de ninguém. E sombras a rodos.
Já com a madrugada bem alta, vindo de nascente, ou seja pela estrada de alcatrão ratado logo na feitura, e virando-se para sul, ao deter-se entre o paredão de silvas e o renque de choupos, sobre o carreirito de terra batida que daqui jamais sairá em demanda de notícias, um carro com gente lá dentro. E estas sombras em torno, de tão espessas, mal deixam espreitar e dar conta de quem lá estará. Duas pessoas apenas? O que as traz aqui a uma hora destas? Não virão ao assalto dos ninhos de cegonha, para lhes roubar os ovos e fazer batidos?
Só pode ser isso, pelo que o carro estremece sem ter o motor ligado.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

DA LOGÍSTICA AO APROVISIONAMENTO, PASSANDO PELAS TÁCTICAS DE AVANÇO

Sente-se cansado de mais para tentar. Desistir é próprio dos fracos –, é o lema que é uso citar em casos de cedência à fraqueza da hesitação, da dúvida entre prosseguir ou parar por aí. E parado já ele está, há já uns anos, embora distante de se considerar derrotado e condenado à mudez dos proscritos. Morrer, sim, mas devagar―, diz-se que disse o outro, esse imberbe reizinho que se armou em conquistador de areais e por lá ficou enterrado, sem cavalo branco nem nevoeiro que no-lo devolvessem. Morrer, não, que ainda é cedo―, diz-se ele ao espelho, logo pela manhã, todos os dias. Um dia há-de vir, no entanto, em que já nada se dirá a si próprio. Seja através de que espelho for. Até o dos olhos de alguém.
Levanta-se, dá uns passos pela sala, vai até à janela, pousa as mãos no peitoril. Olha sem ver que tempo faz ou se prevê, há quem lhe acene da rua e ele responde sem saber a quem, e logo se retira para dentro, voltando a instalar-se, sentado à secretária, no seu posto de comando territorial das tropas por cá sediadas. Com a esferográfica na mão e o papel já posto a jeito, ei-lo a galope, na dianteira, a toda a brida. A dar o exemplo e a demonstrar como se ataca e se destroça, sem tréguas, um inimigo muito superior em número.
Hoje atacarão os amarelos, pronto. E os azuis que se aguentem, com os verdes na rectaguarda, apoiados por morteiros de médio alcance. Nada a fazer quanto aos vermelhos: são os rosas e os laranjas que dão cartas, no que diga respeito à estratégia de consecução e divisão dos saques já perpetrados ou a perpetrar. Haja quem tenha olhos e poder de decisão nas emergências em que o elemento surpresa sempre será um trunfo todo poderoso a ter em conta…
“Esses comprimidos todos são para tomar, e não para brincar”―, diz a enfermeira, vinda do nada e num relâmpago caída em plena terra de ninguém, enquanto lhe ajeita a almofada e lhe enche o copo de água, para que ele, numa única investida, faça desaparecer nas trincheiras quantos soldados se vejam, inimigos ou não.

sexta-feira, 9 de junho de 2006

DA TOLEIRICE DE SE USAR A ESQUERDA SEM SE SER CANHOTO

Era só um homem só, com quilómetros de distância no olhar. Fazia-se sentir uma estranha aragem, a cheirar a maresia e a pez dos barcos no cais, mesmo no pino do estio e nas mais desmemoriadas vertentes do interior, sempre que ele entrava numa povoação. E todas as pessoas espreitavam o céu e logo se apressavam a fechar janelas, mal o viam. Passava ele, passava a brisa. E tudo voltava à normalidade da miséria e concomitante fingimento de uma alegria trigueira a malhar de sol a sol. E vai de reabrir janelas, sem se cuidar com os olhos de quem da rua pretendesse dar fé do recheio ou da sua falta.
Vagueava ao acaso do estado em que trouxesse os sapatos. Enquanto as solas não se demonstrassem permeáveis aos rigorosos argumentos do terreno, perdia-se entre desfiladeiros e promontórios, sem sequer estrada previsível pelas campanhas eleitoralistas. E se se descobrisse prantado em terra, embora com os pés tapados por cima, preferia as suaves vias romanas, de grandes lajes polidas por milénios de rapina; ou os areais à beira-mar, onde só o lume pisado lhe imporia na ideia a urgência de logo conseguir novos sapatos, ainda que velhos e já meio gastos por outros pés, que não dele.
Alguns, porque escassos de imaginação, diziam-no antigo marinheiro e comandante de vários navios naufragados por torpedos do inimigo. Outros, especulando noutra onda, punham-no como desertor em fuga perpétua, por vergonha, e não por medo, de ainda vir a ser fuzilado. E outros, os menos votados à leitura de românticos e afins, tinham-no como um vadio, um vira-latas sem préstimo, um preguiçoso, em fuga perpétua, sim, mas do trabalho.
Os catraios adoravam sabê-lo por perto deles: construíam moinhos de papel e aproveitavam o "milagre" da brisa para os experimentar. E chamavam-lhe nomes, de longe, só para que ele fingisse persegui-los com o olhar de quilómetros sobre quilómetros de distância. E era o “papão” para os mais miúdos, na hora de não quererem a papa ou de irem para a cama sem que o sono fosse com eles.

E agora, uma paragem técnica: o que há-de fazer um contista num caso destes, se se mói a pensar em como encerrar a história? O mais justo é matá-lo, num duelo ou de acidente, atropelado ou a rir-se das partidas que pregou quando era moço. Matemo-lo, pois, e a tiro.

Achou ele a pistola num ermo, quando por detrás de silvas se baixou em busca de não ser visto de calças na mão. Mas não para dar largas à tripa e se esvaziar de rancores: estava a bater uma bela pívia, com os pensamentos ferrados numa mulheraça com quem se tinha cruzado horas antes. E foi aí que viu a pistola no feno. “E se ela até estivesse carregada?”– cogitou na altura, em voz alta, enquanto esticava a mão livre, a esquerda, e pegava nela.
Apontou-a à cabeça e pensou, antes de lhe puxar o gatilho, que para fingir o disparo também diria “pum” como os putos, quando de longe disparavam contra ele. Mas já não disse.

quinta-feira, 8 de junho de 2006

O CASO DO GATO E DA MORTE INOPORTUNA

Todas as quartas-feiras, por volta das quatro e um quarto da tarde, aquele gato aparecia a miar na mansarda, saltava para o telhado e daí para um cedro do jardim, descendo para o chão com ar contrariado. Uns momentos depois, corria até à porta de casa, procurando entrar pela portinhola que na mesma porta lhe estaria destinada. Contudo, ao confirmar que não estava aberta, deitava-se no capacho de palha e ali se deixava adormecer, à espera.
Quem tudo isto verificava e anotava mentalmente era o velho vizinho do outro lado da rua, reformado e com todo o tempo do mundo para tal tipo de observações. “Estranha coisa”–, cogitava, a meia-voz.
Cerca de uma hora mais tarde, o gato levantava-se e espreguiçava-se a toda a extensão do corpo, rabo incluído, experimentava de novo a portinhola, que alguém já lhe abrira por dentro, e reentrava em casa. Todas as quartas-feiras, de tarde, em batendo as cinco e um quarto, com precisão de relojoeiro dos que andavam de bicicleta.
A curiosidade é inimiga da prudência, ao que se diz. Mas quem é que não se morderia todo para decifrar um mistério assim, ali, à porta de casa, como se fosse um desafio ao seu intelecto? Então, sem lupa nem cachimbo, o idoso sherlock pôs-se em campo e tratou de encontrar resposta à mais óbvia questão que se lhe impunha: a quem estorvaria o gato, lá dentro, naquele espaço de uma hora? Fosse a quem fosse, dona ou secreto visitante, o certo é que alguém o fechava no sótão, de onde se escapava pela mansarda, e lhe negava, durante uma hora exacta, o acesso restrito através da portinhola.
Disfarçando-se de jardineiro no seu próprio jardim, começou o velho a tomar nota, na quarta-feira seguinte, com início pelas três e meia e a terminar com o regresso do gato ao seu ninho familiar pela passagem personalizada, de quem entrasse ou saísse da casa em frente.
Far-se-iam contar as quinze e quarenta e cinco – conforme o registo inscrito no relatório detectivesco –, quando a porta frontal do prédio se abriu e deixou sair alguém, com um inequívoco ar de marido que trabalha por turnos e há-de pegar às quatro. E passavam os certeiros quinze minutos das dezassete, e lá se via o bichano esticadinho até ao gume das garras, nunca esquecendo a cauda, e a meter-se no buraco entretanto reaberto. E no tempo intermédio? Nada de nada se viu.
Só se veio a ver alguma coisa, numa outra quarta-feira mais à frente, quando de repente faleceu o dono da fábrica e os trabalhadores do turno das quatro nem chegaram a picar o cartão, voltando para casa.
E o gatarrão lá estava, no capacho de palha, a dormitar, à espera que alguém, do lado de dentro, lhe reabrisse a portinhola. Mas foi o dono que, do lado de fora, lhe escancarou a porta e o deixou entrar, aí uns bons três quartos de hora mais cedo que o costume.

domingo, 4 de junho de 2006

HISTORINHA DE FADAS PARA ADORMECER CACHOPOS D'OUTREM

Era uma vez um príncipe que ainda não tinha a sua princesa. E a única princesa disponível morava a tão grande distância, que só a cavalo lá se chegaria e ao fim de duas semanas e meia. Mas em todo o reino não havia cavalos. Ou melhor, só havia um. E esse único cavalo pertencia a um pastor, um mocetão rijo e moreno, que vivia com seu rebanho e seu cavalo muito perto da fronteira.
“Dou-te dez moedas pelo teu cavalo”–, mandou o príncipe propor ao pastor através dos seus emissários, de propósito seleccionados para tão nobre como justificável missão.
“Nem por cem”–, respondeu o único cavaleiro possível nas cercanias aos funcionários reais, que assim voltaram de nariz no chão, passo a passo, até ao príncipe.
“Dou-te duzentas moedas pelo teu cavalo”–, mandou sua alteza dizer, desta vez, por outros emissários, escolhidos como sendo detentores de maior capacidade de diálogo e persuasão.
“Nem por quinhentas”–, repontou sem medo o dono do único cavalo em muitas dezenas ou centenas de léguas em volta, grande parte das quais foram nessa ocasião calcorreadas, num e noutro sentido, pelos frustrados servidores de sua alteza.
“Dou-te mil moedas pelo teu cavalo”–, ofereceu-lhe o príncipe, desta feita, servindo-se da voz do velho aio que o criara, desde os cueiros esborraçados até à dramática hora de o ouvir falar em casamento. Se aquele velho vassalo não o convencesse – pensara com grande acerto o jovem príncipe –, ninguém mais o convenceria.
“Para que quer ele o cavalo?–, perguntou enfim o pastor-cavaleiro, cônscio de quão importante seria, nesse momento, a decisão que ele, um vulgar servo da gleba, poderia e deveria tomar, a favor ou contra o reino onde nascera e onde gostaria de morrer.
“Para que possa ir em demanda da princesa, ao reino vizinho, e com ela se casar”–, confidenciou o velho aio, com lágrimas nos olhos e de joelhos em terra, quase morto de canseira e desesperança.
“Podes levar o cavalo. Não te quero nada por ele”–, diz-lhe o pastor, ajudando o ancião a levantar-se e encaminhando-o até à estrebaria, onde o alazão, nervoso, relinchava e pinoteava com graciosidade.
Quando o príncipe, um mês depois, vinha a atravessar a fronteira, de regresso, trazendo consigo a princesa, que viria a ser sua esposa, já por cá tinha sido implantada a república. Viu-se, por isso, obrigado a voltar para o país do sogro, mas a pé: o cavalo foi-lhe confiscado na alfândega por ele não provar que lhe pertencia.
Conta a lenda, ainda, que a princesa também não quis mais nada com ele, preferindo então instalar-se na nova república como professora de equitação. É que em todo o país só havia um cavalo, que era dela e do marido, o pastor.