O BEIJO, O VÍCIO DE SONHAR E A FALTA QUE PODE FAZER UM LENÇO LIMPO
Não seria um rapagão de inquebrantável postura. Até era magro, não alto nem baixo. A pele, naquele tom de quem viva os dias na moirama de montes e quintas sem muros capazes de lhe suster o impulso. Uns olhos obscuros de incógnita perante a obscuridade dos dias propostos, então, como presente e futuro. O cabelo farto e negro, aciganado, sem pente que nele pegasse e o convertesse a penteado de ir à missa e pôr uma moeda na caixa de qualquer santo careca. Quase dezasseis anos de incerta alimentação, mal vestidos e mal calçados, sem experiência motriz quando o instante pedisse um arranque em consonância, onde hesitações medricas, sob prévia evidência do rubor, nem por hipótese remota se pudessem tolerar. E a puberdade, essa ponte marota entre pasmo e punho, ainda nem há tanto tempo assim fora atravessada.
Ela, com mais três anos na vida. Tudo no sítio. A tender para o baixo e bem fornida. Branca de pele, não de ideias. Os olhos com maroteira de reserva para que se não espreite a vida como indelével sensaboria. Boca de puta debutante, relançando o riso dos olhos: o lábio de cima, a sublinhar um buço alourado, só perceptível quando o sol lhe dava a mão e o punha ao léu; e o de baixo, pendente, com um toque de chiste em contínuo, rematando a óbvia função de engodo.
Como único defeito―pensava ele―, tinha ela um namorado, desde as carteiras da primária, que só aos sábados à noite a procurava. Todos os demais dias estavam libertos, portanto, não havendo que recear a inoportunidade de alguma aparição não milagreira. E esse namorico já se arrastava há tanto, que tudo o que houvesse a descobrir estaria descoberto, só faltando a farsa do casamento para que a mentira não durasse, como seria natural, muito mais tempo.
No hoje que importa à história, e de que hoje já ninguém se lembrará mal ou bem, andam os dois, o puto e a aprendiz de puta, a passear de mão dada numa mata de cedros sem olhos predadores, como se andar de mão na mão―fruto proibido―seja bastante. E nem uma palavra, na boca ou nos olhos. Nenhum gesto repentino a dar a ouvir ansiedade à ansiedade. Ou pelo menos da parte dela, sabida, com muitos anos por conta do que nunca custou a aprender com a prática. Dele, talvez já o roedoiro íntimo seja outro, com a expectativa agarrada como lapa ao ensejo de viver pela vez primeira o que nem em sonhos se sonha, tão distante é a realidade vivida da simples pressuposição.
Por isso, quando ela de súbito se lhe põe à frente e o faz parar, se lhe dependura no pescoço e contra o corpo dele esmaga o corpo, com tudo o que sabe ser apetecível de esmagar, e lhe ferra um beijo na boca, ao jeito de quem sente estar a pisar um terreno nunca antes desbravado em vida alguma, somente lhe cabe, a ele, deixar-se ficar muito quieto, de olhos escondidos no sótão das pálpebras, desejando com ardor que este sonho palpável, palpante, palpitante, não se acabe nunca, não se desvaneça ante os primeiros raios de luz, não se esborrate em remela de bocejos e langor infindo.
Mas há-de esborratar, há-de desvanecer, há-de acabar. Antes, porém, enquanto a sucção se conservar activa e garantir a proximidade e até a utopia de mais alguma aproximação, há que tentar descobrir qual a rota marítima para a lua e mergulhar mar adentro, descer lá mesmo ao fundo das mais profundas fossas abissais.
Quando a aula chegou ao fim, uma hora mais tarde, naquele hoje tão distanciado que já nem ontem será mas anteontem, também pela vez primeira ele viu que os olhos dela não riam como até aí. Ela chorava. E nem lhe perguntando pela razão do pranto, abraçou-a com quanta força tinha e chorou com ela.
Ela, com mais três anos na vida. Tudo no sítio. A tender para o baixo e bem fornida. Branca de pele, não de ideias. Os olhos com maroteira de reserva para que se não espreite a vida como indelével sensaboria. Boca de puta debutante, relançando o riso dos olhos: o lábio de cima, a sublinhar um buço alourado, só perceptível quando o sol lhe dava a mão e o punha ao léu; e o de baixo, pendente, com um toque de chiste em contínuo, rematando a óbvia função de engodo.
Como único defeito―pensava ele―, tinha ela um namorado, desde as carteiras da primária, que só aos sábados à noite a procurava. Todos os demais dias estavam libertos, portanto, não havendo que recear a inoportunidade de alguma aparição não milagreira. E esse namorico já se arrastava há tanto, que tudo o que houvesse a descobrir estaria descoberto, só faltando a farsa do casamento para que a mentira não durasse, como seria natural, muito mais tempo.
No hoje que importa à história, e de que hoje já ninguém se lembrará mal ou bem, andam os dois, o puto e a aprendiz de puta, a passear de mão dada numa mata de cedros sem olhos predadores, como se andar de mão na mão―fruto proibido―seja bastante. E nem uma palavra, na boca ou nos olhos. Nenhum gesto repentino a dar a ouvir ansiedade à ansiedade. Ou pelo menos da parte dela, sabida, com muitos anos por conta do que nunca custou a aprender com a prática. Dele, talvez já o roedoiro íntimo seja outro, com a expectativa agarrada como lapa ao ensejo de viver pela vez primeira o que nem em sonhos se sonha, tão distante é a realidade vivida da simples pressuposição.
Por isso, quando ela de súbito se lhe põe à frente e o faz parar, se lhe dependura no pescoço e contra o corpo dele esmaga o corpo, com tudo o que sabe ser apetecível de esmagar, e lhe ferra um beijo na boca, ao jeito de quem sente estar a pisar um terreno nunca antes desbravado em vida alguma, somente lhe cabe, a ele, deixar-se ficar muito quieto, de olhos escondidos no sótão das pálpebras, desejando com ardor que este sonho palpável, palpante, palpitante, não se acabe nunca, não se desvaneça ante os primeiros raios de luz, não se esborrate em remela de bocejos e langor infindo.
Mas há-de esborratar, há-de desvanecer, há-de acabar. Antes, porém, enquanto a sucção se conservar activa e garantir a proximidade e até a utopia de mais alguma aproximação, há que tentar descobrir qual a rota marítima para a lua e mergulhar mar adentro, descer lá mesmo ao fundo das mais profundas fossas abissais.
Quando a aula chegou ao fim, uma hora mais tarde, naquele hoje tão distanciado que já nem ontem será mas anteontem, também pela vez primeira ele viu que os olhos dela não riam como até aí. Ela chorava. E nem lhe perguntando pela razão do pranto, abraçou-a com quanta força tinha e chorou com ela.